Natalicídio
Quisera um anjo ter-lhe oferecido a dádiva de um rebento que fosse querido e predestinado a grandes feitos, mas sua prenhez era fruto de uma violência a qual não pôde se defender.
E naquela noite da véspera de Natal, suas contrações doíam menos que o medo do porvir.
Na fria calçada da estação ferroviária, o papelão era sua cama e a solidão, sua companhia. A resposta a seus gemidos eram os ecos que ouvia, abafados pelo ruído das grossas gotas de chuva que precipitavam do éter.
Não havia mãos a ajudar senão as suas e na impossibilidade de se despir, rasgou num átimo seus andrajos, abrindo caminho para quem haveria de conhecer em muito breve, a fria atmosfera de um dia chuvoso e a gélida indiferença de uma sociedade apodrecida.
O papelão embaixo de si, encharcado de chuva e líquido amniótico, tingia-se de um rosa, que aos poucos tornava ao vermelho.
As pernas sujas e esqueléticas se abriram, enquanto o esquálido torso se apoiava para trás sob braços finos, com múltiplas perfurações supuradas por agulhas hipodérmicas.
E em sôfrega agonia, deu ao nascituro o derradeiro impulso para abandonar a segurança do útero.
As badaladas dos sinos da estação compuseram um dueto com o ulo emitido pela agora, ex-gestante.
Seu grito cessou, mas as badaladas prosseguiram até a décima-segunda.
Era Natal finalmente e o nascituro, agora natimorto, jazia no papelão, quase no colo da mãe, que como num conluio com seu triste destino, dava o seu último suspiro.
Não havia mais esperança para este mundo cruel e insensível, mas a providência se encarregou de dar às vítimas da miséria absoluta seus merecidos presentes: o descanso para um espírito maltratado e a inexistência para quem a promessa era uma vida de pungente e inevitável sofrimento.