Estiagem voluntária
Levantei-me, sedento.
E minhas papilas gustativas ressecadas talvez fossem mais responsáveis pelo inopino de meu elevar que meus próprios quadríceps.
Munido de meu copo descartável, que por um zelo sustentável já guardava há semanas, adentrei o recinto onde colegas barnabés teciam superficialidades enquanto se esmeravam em cumprir bovinamente atribuições que não lhes competiam por lei nenhuma, mas ainda assim levavam a cabo por uma subserviência estranha ante a estrutura, que mais de três décadas depois, ainda me causava estupor em constatar.
Pressionei a torneira do bebedouro inutilmente, pois até o Deserto do Saara possuía mais H²O que o galão posicionado no funil.
Inquiri aos colegas se já haviam telefonado ao fornecedor para o devido reabastecimento e fui informado que "fulana de tal", que se encontrava no recinto era a responsável e faria o contato.
Menos mal. Afinal de contas havia o bebedouro coletivo no pátio e a satisfação de minha ânsia sedenta era mais questão de me deslocar algumas dezenas de metros, do que propriamente a espera pela entrega de um galão.
Atividades consumiram-me o tempo, substituindo a sede pelo vácuo estomacal, ao qual dei cabo numa escapadela para um contido e doméstico regabofe privado.
Eis que qual um déjà vu, a porosidade de meu palato apresentou analogia em relação às torneiras da Faixa de Gaza, o que motivou um retorno ao bebedouro que outrora me brindara com vinte litros de ar engarrafado e com surpresa, constatei que horas depois e com a ciência de quem deveria ter tomado a providência de substituí-lo, jazia ainda estiado.
Investido de furor social, empunhei o galão cheio de vento e saí batucando seu fundo rumo ao bebedouro externo, onde tratei de abastecê-lo com líquido inodoro, incolor e insípido, dando cabo de recolocá-lo, pleno agora de sua finalidade, à disposição minha e de todos que quisessem dele servir-se.
A responsável pela troca do galão já não se encontrava no prédio. Foi-se rumo a seus afazeres domésticos ou quem sabe, a outra repartição em que pudesse matar a sede sem que lhe cobrassem que se responsabilizasse pela plenitude hídrica dos galões dos bebedouros, quem sabe?
E todos que outrora sentiram sede e ao se depararem com o galão vazio tornaram rumo ao bebedouro externo, desta feita puderam poupar uma pernada, pois alguém fez o que todos poderiam ter feito, afinal de contas, quase todo mundo gosta de se beneficiar individualmente dentro de uma perspectiva COLETIVA, mesmo sendo incapaz de mover uma palha pelo próximo.
Nada disso me impressiona.
Afinal de contas, sei como age e pensa essa gente dita esclarecida, mas de cabeça tão dura e modos tão egoístas...