Partida e chegada
Meses se passaram desde a última carta respondida.
E a distância física entre eles só não era maior que os prolíficos diálogos entremeados pelo passar das semanas, que pontuavam emoções e sentimentos recíprocos, trocados através do rodeio dos bicos de penas que espalhavam o escasso nanquim nas faces dos papeis de palha.
Anos se passaram, desde que Rúbia e sua família singraram o sertão em carroças e lombos de burros, na esperança de permutar com o destino, miséria por trabalho.
Quando da partida, Ataíde continha as lágrimas em olhos marejados, com um sentimento de perda que ignorava ainda a saudade, mas sem noção do deserto que se abriria no latifúndio de seu coração.
Rúbia, envolta em chitão e brim puído, do lombo do muar, quando na iminência da silhueta de Ataíde sumir na lonjura, acenou vigorosamente, tendo como resposta a seu gesto, um virar de costas, com a cabeça baixa, seguido do arrastar de pés pelo terreiro, rumo ao casebre que o abrigava com a mãe idosa e os barbeiros das frestas do pau a pique das paredes.
Os dias se faziam semanas, que se ajuntavam em meses, que teimavam em se fazerem anos, alimentando a nostalgia dos jovens, que desde os folguedos de crianças, sonhavam um dia em ser casal, e as maltraçadas linhas das missivas eram o único laço que os unia em seu propósito mútuo de amor correspondido.
Ataíde avivava em Rúbia as lembranças do Sertão, contava sobre o calor que abrasava o solo, deixando-o estéril, da lida com as cabras cada vez em menor número, do caminhar de léguas até o açude, da colheita de palma, que mantinha bichos e gente hidratados e alimentados nos tempos de seca extrema, do estado de saúde cada vez mais debilitado de mãinha, que se antes não andava, agora também não falava.
Rúbia respondia em papéis cheirosos, contando sobre a vida na cidade, os apuros até que a família deixasse a marquise para morar num cortiço, de seu emprego como servente no solar de um nababo, sobre a prisão do irmão que se envolveu em jogatina, a sina da tia, que frequentava bares e um dia sumiu no mundo, dos pais que faziam doces para vender e com maior frequência que as novidades, as juras de amor e felicidade quando pudessem finalmente estarem juntos.
A tristeza ficava subentendida entre ambos quando se prometiam um futuro juntos, pois isso só seria possível com a ida de mãinha rumo aos braços do Senhor do Bonfim.
E um dia, como urutau cansado que dá o último grito, mãinha não abriu mais os olhos, deixando como legado a Ataíde, a lacuna do amor materno perdido, que jamais poderia ser preenchida.
A tristeza da perda de mãinha, aliada à apreensão da ausência de notícias de Rúbia, apressou Ataíde na providência de vender suas parcas posses e rumar rumo ao leste, encarando a poeira das veredas da caatinga, rumo à Capital, onde uma promessa de vida aguardava para ser cumprida.
Nas noites ao relento e nos muitos dias calcinantes da jornada, farinha, café, rapadura e esperança eram seu sustento, até que vislumbrasse finalmente as construções de alvenaria e o pétreo calçamento de irregulares encaixes, que pavimentava o rumo de sua intenção.
Entre uma parada e outra para pedir informações, finalmente subia a ladeira que levava ao cortiço da Rua do Tira-chapéu, estranhamente diminuindo a marcha dos passos assim que vislumbrou seu destino.
A grande porta de madeira carcomida estava aberta, deixando vislumbrar a escadaria que levava ao andar superior, onde morava a família de Rúbia.
Era final de tarde e Ataíde, extenuado da viagem e inseguro quanto à recepção que teria, colocou o embornal no balaústre da escada, onde apoiou o pescoço e com a intenção de se recompor para passar uma boa impressão, decidiu descansar um pouco, descanso que inadvertidamente, tornou em cochilo.
Rúbia tocou delicadamente o rosto de Ataíde, que despertou subitamente do torpor, encarando-a e dizendo:
_Rúbia, cochilei, é?
_Sim, meu rei. Estava aí na cadeira de balanço olhando para o nada e depois cochilou.
_Eu estava lembrando de como nos reencontramos e cochilei, mulher. Depois de velho, a gente dorme por qualquer coisa, viste?
_E aí, meu rei? Depois de tanto tempo, você faria tudo de novo?
_Mulher, dá um tempo pr'eu pensar?
Fez-se um cúmplice silêncio entre os dois, até que Rúbia se sentasse no colo de Ataíde e ambos se enlaçassem num caloroso abraço e dessem uma sonora gargalhada, como se celebrassem a ventura do improvável feito sonho realizado.