Um dia a mais ou menos
Jorge era um suburbano sonhador.
Por entre as lacunas da labuta, tecia em sonhos, desejos que o tempo se encarregava de esmaecer.
E nas noites curtas como o cobertor de suas finanças, os sonhos que tinha acordado não davam as caras.
Às vezes fuçava gavetas e olhando fotos antigas, via a si como um conhecido de outrora e os amigos e familiares, como sombras ou fantasmas de um filme que já vira, mas pouco se lembrava.
De seus lábios crispados pela sempiterna angústia, a tosse e os bocejos eram mais presentes que a fala, dando a si um ar sorumbático que contrastava com a passiva ingenuidade de seu íntimo.
O tempo gasto em divagações, de pé nos coletivos que o levavam e traziam do trabalho seis vezes por semana, a atenção difusa, quase automática que dava no acabamento dos quatrocentos e oitenta rodapés que produzia e encaixotava por dia, eram um lapso de sua percepção de existência, que vez ou outra, era interrompido pela dor de bolhas estourando em seus dedos.
A cada crepúsculo que precedia a sirene que indicava o final de mais uma jornada, o cansaço secundava-se ante o vazio de seu estômago, que cinco horas atrás, fora enganado pelas parcas calorias frias trazidas de casa e ingeridas naquela meia hora que dividia os turnos.
Religiosamente às nove da noite, saltava no ponto de ônibus distante oito quadras de seu barraco e passava em frente a um boteco, que naquela hora estava sempre cheio de personas das mais variadas estirpes e condições: o ébrio fortuito, o traído empedernido, o aproveitador de ocasião, a meretriz no ofício, o transeunte ocasional, o falastrão compulsivo, o crente caído, todos congregados em uma etílica algazarra de script contumaz.
Jorge sempre passava por essa fauna notívaga sem se deter, no rumo do descanso necessário ao batente do dia seguinte, mas desta vez, resolveu abdicar dos dois pães com manteiga que compraria para o café da manhã e depois de muito tempo, voltar a sentir o gosto e o torpor de uns tragos de aguardente.
Enquanto sorvia o líquido barato que lhe ardia a língua e queimava a garganta, pôs-se a ponderar sobre a trajetória que culminou naquele momento. Uma infância difícil, de surras e abandono; uma juventude de descobertas, decepções, descaminhos e retomadas; a maturidade que trouxe amores e empregos, mas nenhum deles que durasse; e finalmente sua decrepitude, na qual abraçou a penúria de uma sobrevivência refém da exploração como alternativa à miséria das ruas da metrópole.
Tomou o último gole, entregou uma nota amarfalhada ao balconista, colocou no bolso as moedas do troco, saiu do bar sem olhar para trás e enquanto caminhava tropegamente no rumo de seu barraco, encheu os pulmões com o ar serenado da noite do subúrbio e sob o torpor da embriaguez, preconizou, em tom de lamúria:
"Um dia tudo acaba, mas amanhã tem mais".