"Se pego o irresponsável que deixou isso aqui, eu arrebento", proferiu Jair, entre urros e impropérios, enquanto manquitolava, com expressão que denotava mais raiva do que dor.
Acabara de tropeçar num cavalete que sinalizava pintura fresca de meio-fio, mas com um vício de origem imperdoável: interpunha-se entre Jair e seu percurso matinal, grave sacrilégio ao seu direito de ir e vir.
Seguiu adiante, resmungando, pisando na tinta fresca, não sem antes jogar o cavalete no meio da rua. Afinal, sua dor e indignação necessitavam de um escarcéu à altura.
Ao atravessar a rua, devidamente interditada com o cavalete derrubado, cruzou com Nelson, seu vizinho diabético, que retornava da padaria devidamente paramentado com máscara de proteção e luvas.
Ao bom dia recebido, retribuiu com um acesso de tosse tão forçado quanto regado a perdigotos.
"Sujeito asqueroso. Doentes como ele deveriam ser confinados em campos de concentração", remoeu Jair.
Seguindo seu caminho, acometeu-se de trejeitos ofendidos ao vislumbrar que no canteiro externo da casa ao lado, algum "macumbeiro ou coisa pior" havia plantado mudas de Arruda e Espada de São Jorge. Conferiu de soslaio o arredor e sob a cumplicidade de não ser visto e conveniência do isolamento social em virtude da pandemia, arrancou com furor piedoso as plantinhas, atirando-as sobre a casa.
"Que saibam que em minha rua, satanistas não têm vez", regozijou-se intimamente o cidadão de bem.
Quase chegando a seu destino, o imponderável lhe brindou com o azo inesperado de se sentir o paladino de uma causa própria: o gato que frequentava fortuitamente o muro de sua casa estava ali, dormitando junto à parede, alheio à sua presença e pronto a sofrer no couro felpudo as consequências das profanações cotidianas a seu recôndito familiar.
Não se fez de rogado: imaginou-se um zagueiro de roça acometido do despeito de um drible desconcertante, agredindo a canela do adversário com pontapé criminoso, tornando o pobre felino o objeto de seu delírio.
"Esse bicho sarnento jamais será penduricalho de meu muro novamente", sorriu num esgar que traumatizaria o incauto mais corajoso que ousasse encará-lo.
Chegou finalmente à Unidade Básica de Saúde, recebeu um cumprimento da servente, devidamente ignorado, e dirigiu-se asperamente à atendente: "Espero que meus exames estejam prontos, pois o salário de todos vocês é pago pelos meus impostos".
Constrangida pela grosseria, a senhorinha de branco repassou a Jair um envelope lacrado, motivação única e primal da sua epopeia urbana.
Jair sentou-se num canto, rasgou o lacre de maneira ansiosa e com as mãos trêmulas e olhos marejados, leu o diagnóstico contido: CID 10-C76.1.
O mundo fez justiça a Jair.
Finalmente estavam quites.