Coletivo singular

32 3 0
                                    

O ônibus parou ao carminar do farol, enquanto eu sorvia do amargor liquefeito em negro, que me queimava o palato e aquecia o ânimo.

Da poltrona do coletivo, a fleuma do olhar de uma passageira cruzou com o sarcasmo de minha atenção, ali naquele balcão, onde por alguns minutos, toda manhã, eu incorporava o juiz impercebido da humanidade.

Por um desses jocosos caprichos das filigranas do cotidiano, ambos usávamos boinas. E não eram só boinas. Eram exatamente iguais, cinzas, enterradas meio de lado nas distintas e respectivas cabeças.

Enquanto os olhares persistiam em se desafiar, surpreendi-me em como um mero adereço poderia influir tanto em como as pessoas poderiam ser percebidas.

Na distinta senhorita, dava ares de elegância, ornando em tom com sua echarpe e brincos, que apesar de discretos, eram traídos pela reluzência.

Em mim, somava uns dez anos de idade na aparência, já envelhecida por um longo e fino cavanhaque salpicado de grisalho. Meu casaco, em tom pastel, ornava com a boina, compondo um tipo humano perfeitamente caracterizável como senil jovial.

Pousei meus óculos no septo e decidi fitar com apuro a interessante observadora. Meu pescoço inclinado em direção ao ônibus e o arquear do sobrecenho devem ter parecidos cômicos à moçoila, tirando dela um sorriso amplo, coberto por suas mãos enluvadas.

Sem mover nenhum músculo, senão lábios e bochechas, retribuí ao mímico gracejo, dando ares juvenis a meu semblante sorridente.

Era um flerte, afinal.

Consumado, inesperado, díspar, mas uma convergência de humores, quiçá, interesses.

Ela se levantou, expondo gracioso colo, envolto em veludo cáqui, gesticulando algo que aparentava a intenção de descer e ir ao meu encontro.

Surpreso pela intenção da mulher e ao mesmo tempo intrigado por tanta deferência recebida por tão banal chamariz, tudo que me dignei a retribuir foi um gesto, acenando, em clara intenção de adeus.

O farol iluminou-se em verde, ao mesmo tempo em que a dama de boina sentou-se, num átimo, precedendo o arranque do coletivo.

Enquanto aquele lapso de trinta segundos se esvaía em fumaça de biodiesel, sorvi o último gole de café e enquanto alisava a navalha no bolso do casaco, proferi para ninguém, entredentes:

"É dia santo. Hoje não mato ninguém."

Nonsense ComumOnde histórias criam vida. Descubra agora