Fogo fátuo

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O silêncio, profanado pelo cricrilar vindo da escuridão do terreiro era alvíssara para o que se propôs a executar.

Naquele fim de mundo, onde a vizinhança era grandes espaços preenchidos de nada, talvez pudesse se dar ao luxo de permitir gritos, enquanto empreendia sua intenção.

Aos conhecidos, estaria na metrópole. Aos que se escandalizariam com o resultado de seu plano, a autoria seria uma incógnita que em nada remontaria a si.

Enquanto balouçava na rede, na penumbra profanada pelo luar, observou sua candidata a vítima chegar, caminhando a passos curtos e despreocupados, farfalhando seu longo vestido branco nas pedras do passeio, evocando um espectro, que talvez viesse a se tornar dali a pouco.

Conferiu seus instrumentos: corda, faca, pá... Tudo que precisava estava ali, menos a proximidade de sua vítima, o que felizmente para ele, era questão de tempo. Muito pouco tempo por sinal.

Decidiu se levantar somente quando ela estivesse à sua frente, ávida por sua atenção, carente de seus favores, cativa de seus sentimentos não correspondidos, inocente do que iria lhe acontecer.

A pálida silhueta se aproximava.

Podia ouvir já o farfalhar da renda arrastando nos degraus da varanda.

Esperava agora sentir seu aroma peculiar, um misto de frescor da juventude com perfume barato, mas em vez disso, uma brisa gélida lhe provocou arrepios, paralisando seus nervos.

Decidiu que chegara a hora.

Não proferiria nenhuma palavra.

Seria rápido, imaginando que quanto menos tempo empenhasse naquilo, menos memórias teria para atormentá-lo no futuro.

Pôs-se em pé e finalmente a fitou.

De imediato, prostrou-se deitado, só que agora no chão, acometido de um pavor excruciante, que lhe paralisou o corpo, apertou seu peito e lhe privou da respiração.

Enquanto perdia os sentidos, com o coração parado, a energia vital se esvaindo de vez, a imagem do espectro que fitou congelou-se em sua retina: uma face disforme, com grandes órbitas vazias, de onde vermes caíam sobre o rosto, emoldurado por sulcos profundos, onde o sangue ocultava horrendas pústulas. Onde deveria haver um nariz, grotescos septos sem cartilagem encimavam um sorriso maligno, escancarado, de lábios roxos e finos, que não conseguiam esconder uma arcada composta de múltiplas e afiadas presas.

Ato contínuo, a porteira se abriu.

Aquela que seria a vítima, finalmente chegara, apesar do atraso.

Percorreu apressada o passeio, em direção à varanda, onde estaria seu amado, despretenso algoz.

Seu grito ecoou pelo éter, sem ninguém para ouvi-lo.

Ele jazia, lívido no chão, com um esgar medonho na face e mãos crispadas ao lado do corpo, inerte, definitivamente sem vida.

Ela, em seu desespero, vê a corda, a pá, a faca e numa iluminação própria dos momentos extremos, concebeu o desfecho.

Pendurou a corda no caibro.

Fez nela um laço.

Colocou por debaixo uma cadeira.

Enquanto o laço adornava seu pescoço e o galeio de seu corpo derrubava a cadeira, o ruído de sua morte não foi o baque surdo de um corpo pendurado.

O que soou foi uma estridente gargalhada entremeada com soluços de pranto, findando novamente em profundo silêncio, o mesmo que precedera a tragédia.

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