Gilvazes

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Sempre se sentira sozinho.

Pessoas tendem a odiar o que não compreendem e a inferiorizar àquilo que é diferente. Faz parte da natureza humana, é um fato irrefutável e, possivelmente, imutável, tanto quanto abelhas voam e minhocas rastejam. Lawliet era um ótimo exemplo em sua forma mais corriqueira e normalizada. Seu pai jamais lhe considerara digno de atenção, com exceção do tempo dedicado a lhe surrar, enquanto Beyond sempre estivera ocupado demais tentando mantê-los vivos para notar. As crianças da pré-escola não eram capazes de entender e não sabiam como deveriam lidar consigo, mesmo porque, naquela época, L tampouco conseguiria explicar. Depois da adoção, ainda que a vida tivesse melhorado imensuravelmente em variados aspectos, não deixara de ser atormentado por tal sensação. Watari jamais conseguira entender, mesmo que arduamente tentasse, bem como seus irmãos, e sequer poderia culpá-los uma vez que isto também era de sua responsabilidade. Como nunca interagira socialmente, não tinha ciência de como se portar, de como deveria tratar as pessoas, possuía noção essencialmente zero do funcionamento de relacionamentos e interação. Não compreendia as pessoas normais a sua volta, não entendia por que elas não faziam as coisas a sua maneira, porque eram sempre tão sensíveis ou irracionais. Tudo que sabia era que não eram iguais, e por mais que tentasse, não conseguia se encaixar na forma de agir e se portar por elas determinadas e exigidas. Assim sendo, não tardara em desistir de seguir tal padrão, ficando relativa e momentaneamente, insta pontuar, satisfeito consigo mesmo e resignado em estar só. Ademais, por mais que se sentisse incompreendido, pessoas podiam ser cruéis.

Aprendera isto aos seis anos.

Obviamente, não se lembrava de muitas coisas sobre sua vida antes de ir para o orfanato, era muito pequeno para se recordar completamente, ainda que pudesse inferir boa parte de seu passado, e não tinha coragem de torturar Beyond com perguntas sobre ele. No entanto, indubitavelmente, jamais esqueceria a primeira vez que seu pai lhe batera, a primeira vez que alguém lhe fizera se sentir mal por ser quem era. Nunca fora bom com atividades manuais, desde pequeno seus braços e pernas pareciam teimar em lhe obedecer. Tivera extrema dificuldade em aprender a escrever, muito embora soubesse ler perfeitamente antes de qualquer criança em sua classe ou bairro, bem como alguns problemas para escovar seus dentes sozinho, comer, ou mesmo se vestir. Certamente, sua relação não tão saudável com seu irmão começara nesta época, uma vez que Beyond as vezes se frustrava em ter de auxiliá-lo constantemente, conquanto jamais deixasse de fazer estas pequenas coisas que sua mãe, por exemplo, já não conseguia mais fazer. Seu pai, por outro lado, não parecia concordar com a forma como B resolvera lidar com seu transtorno. Embora não soubesse porquê, felizmente não o via com frequência e eram atípicos os dias em que tinha de compartilhar o mesmo espaço com o detestável homem. Entretanto, em algum momento, jantaram juntos, seu pai, sua mãe, B e L, todos na mesma mesa. Não se lembrava o que comera, ou sobre o que seu pai falava quando acidentalmente esbarrara em seu copo e derramara seu suco ou fosse lá qual líquido em cima da toalha favorita de sua mãe. Porém, recordava-se de como ficara assustado ao ouvir seu pai gritar em meio as súplicas e o choro de sua mãe conforme ele se levantara, tirando seu cinto que lhe cingia a cintura para segurá-lo com a mão, contornando a mesa para chegar até si. Lembrava-se da sensação do medo que somente era exacerbada pela cadeira grande demais para seu corpo, do trepidar de suas pernas ao segurar os braços do móvel em reflexo, bem como das batidas desenfreadas de seu alarmado coração que em muito se assemelhavam com o bater das velhas e gastas botinas de seu pai contra o chão. Recordava-se de permanecer imóvel conforme suas lágrimas silenciosas escorriam em antecipação enquanto seus pequenos olhinhos amedrontados teimavam em se manterem​ abertos, observando a maneira bruta com a qual o homem agarrara seu irmão pelo braço, puxando-lhe agressivamente para forçá-lo a sair de sua frente. Lembrava-se do arder em sua bochecha e do baque do couro contra seu rosto, das palavras que ele lhe dissera aquele dia e do quanto elas machucaram, quase tanto quanto os demais golpes que recebera por chorar.

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