Capítulo 29

471 24 58
                                    

Todas as manhãs Katie acordava desejando estar despertando de um pesadelo. Seu corpo tinha uma memória muscular forte dos primeiros movimentos que costumava fazer quando despertava e a impulsionava para fazê-los todos os dias. Aquela era de longe uma das piores sensações que já tinha experimentado na vida. Seus músculos pediam algo simples – que virasse na cama, – seu cérebro emitia todos os comandos para que o movimento acontecesse, mas o corpo não obedecia e aquela era sua primeira frustração do dia, não lhe dando tempo pra se convencer que tudo o que estava passando era um pesadelo, mas sim reforçando a lembrança que sua vida tinha mesmo se transformado em um inferno.

A sensação de não ter controle sobre o próprio corpo era algo que lhe assombrava antes mesmo de ela viver o que estava vivendo. Certa vez, na escola, em uma aula de artes, a professora resolveu fazer uma dinâmica em dupla, em que um dos indivíduos ficaria vendado e seria guiado pelo outro. Aquela foi a primeira vez que se viu paralisada diante de uma situação. Enquanto segurava a mão de Henry – que ainda era de sua turma, antes de avançar algumas séries, – colocando um pouco de força para garantir que ele não se afastaria, continuou parada sem conseguir se mexer. E ainda que Henry pedisse que ela confiasse nele e que poderia dar um passo à frente ao menos, ela não conseguia, apenas sentiu seu corpo paralisado, os pés fixados no chão, incapaz de se mover, se sentindo vulnerável como nunca antes. Depois de minutos naquela situação extremamente desconfortável e ridícula, em suas próprias palavras, ela tirou a venda e se afastou de toda a turma jogando o pano do chão, deixando todos sem entender.

Naquele dia ela ficou no banheiro da escola até que tivesse que voltar para casa e nunca contou sobre aquele desconforto pra ninguém até que começasse a fazer terapia com Sheldon. Ele lhe deu uma explicação bastante convincente para aquele tipo de reação. Ela tinha nove anos de idade, estava começando a entender o divórcio dos pais e que não, Derek não apareceria para resgatá-las daquela vida estranha na cidade ensolarada para levá-las de volta para casa. Seu cérebro estava começando a conceber a ideia de que a pessoa que ela mais confiava, não era tão confiável assim, e por isso ela não deveria confiar cegamente em ninguém.

Lembrava da sensação daquele dia e do quanto lhe surpreendeu a experiência de não ter visão por alguns minutos. Durante o tempo que ficou no banheiro, só conseguia pensar: "Ainda bem que eu não sou cega... Ainda bem que eu não sou cega... Ainda bem que eu não sou cega..." e se sentia culpada por aquele pensamento; mas não podia imaginar o quanto sua vida poderia ser desconfortável se tivesse que passar o resto da vida daquele jeito. Agora se sentia pior, pois a frustração de querer movimentar o corpo e não poder era quase mortal. Se sentia como uma mente presa em uma estátua.

Derek estava ao seu lado quando ela virou o rosto com a testa franzida. Ele já tinha percebido que a filha estava acordando e se aproximou um pouco para ficar em seu campo de visão. O quarto ainda estava escuro, mas a persiana não era daquela que vedava 100% da luminosidade, então tinha um pouco de claridade que permitia que rostos e silhuetas pudessem ser identificados quando bem próximos.

- Hum... Oi. Cadê a minha mãe? – Katie perguntou em uma voz sonolenta.

- Ela ainda não chegou. Ainda está bem cedo.

- E o Henry? Ele já foi?

- Ele foi ao banheiro e também disse que ia tomar um café – o pai respondeu.

Katie virou novamente o rosto, desejando movimentar todo o corpo para achar uma boa posição. Passar a noite inteira em uma mesma posição era uma novidade para ela, que costumava usar todo o espaço da cama quando dormia. Aquele era um dos motivos pelo qual ela nunca gostou de dividir a cama com ninguém. Nunca nem se passou pela sua cabeça participar de uma das festas do pijama de suas amigas, ou organizar uma.

Muscle memoryOnde histórias criam vida. Descubra agora