Capítulo 98 -

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     AMELIA ARCHERON 


     O reino flamejante do Inferno não parecia mais tão tenebroso quanto da última vez. 

     Talvez porque eu não estava mais percorrendo à deriva pelas terras assassinas e hediondas, e sim sendo guiada pela Morte; talvez porque eu não era mais uma presa, e sim a maior das predadoras. Ou até mesmo porque eu não tinha mais o luto me degradando com o ar corrosivo, qual curiosamente não me incomodou a partir do momento em que fiquei ao encalço da Morte. 

     O ser primordial me guiava pela infuca de trilha ladeada de ossos coruscantes e lava opípara, como a superfície fúlgida do sol. 

    E, diante do Inferno desditoso, coração da crueldade e do fogo cruciante, finalmente pude contemplar aquele lugar de fato. 

      — O Inferno é um planeta? — perguntei para Morte, alguns passos a minha frente, com as beiradas deterioradas do flutuante manto negro farfalhando. 

      No caso, eu fui triunfalmente ignorada.

     As nuvens irascíveis estrondeavam mais alto, ressoando um trovão beluíno e trovejando carmesim. Impressionantemente, ainda pude compara-lo com sangue através das outras nuvens de sombras. Depois de mais alguns minutos — pelo que pude supor pelo tempo incerto do Inferno — disparei mais uma pergunta: 

     — Do que são feitos esses espinhos? — Apontei para as lanças pretas que flanqueavam o caminho e se afloravam do próprio solo arenoso. 

     Em algumas áreas, haviam tantos daqueles que era preciso escalar. Cuidadosamente, devido ao fato de que um movimento em falso poderia lhe custar um membro. Por outro lado, certas partes do Inferno se pareciam um deserto, sem um sequer espinho para irromper as dunas de osso e rios de lava.

     — Não vou responder — declarou a Morte, incisiva. 

    Franzi as sobrancelhas. 

    Ela, colidindo a Foice no solo rarefeito, esclareceu: 

     — Sei quem você é; sei como você é. E sei que se eu responde-la, as perguntas não pararão jamais. 

     Trinquei a mandíbula, acumulando cada vez mais raiva. Meus amigos poderiam estar morrendo, em ambos os mundos. 

     — Eu não lhe devo explicações do porquê estou fazendo perguntas. Não lhe devo tempo ou silêncio. E você sabe que me deve respostas. — Com roupas surradas, manto havia muito perdido, e ódio envolvendo minhas palavras, fiz a Morte estagnar no lugar. — Me responda. Agora. 

     Se virando lateralmente, ela sibilou: 

     — Olhos brilhantes não vão me assustar. — Pisquei, mas não afastei o brilho que se instalou em minhas íris. No entanto, a Morte prosseguiu: — Não, o Inferno não é um planeta; e sim uma realidade por completo. Não há fim. E os espinhos são feitos de nenhum material que conheça. Agora que respondi suas perguntinhas completamente inúteis e mequetrefes, vamos. — Se virou. — A chuva está chegando. E temos muito a fazer. Apresse-se. 

     — Chuva? — Ainda que sempre relampeasse, nunca chovia no Inferno. Por sinal, não fazia a menor ideia de qual instinto a Morte utilizou para saber que uma tempestade se aproximava. Muitas vezes o céu relampeou mais forte e nada acontecera... 

     Pude sentir os olhos da Morte se estreitarem sob as sombras do capuz. 

     — Sim, chuva. Embora você ache que passar algumas semanas aqui lhe façam uma sábia suprema, não sabe de tudo sobre o Reino dos Mortos, Amelia Archeron. — Como se em resposta, o céu rugiu, e minha visão foi coberta por relances escarlates.

Corte de borboletas da morteOnde histórias criam vida. Descubra agora