Terapia

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Maraisa não dormiu durante a noite toda e no dia seguinte estava mais irritada do que o normal. Não saiu do quarto até a hora do almoço.

Quando sua mãe bateu na porta pela primeira vez, ela não respondeu.

Almira insistiu:
-Meu anjo, venha almoçar- disse Almira.

-Não quero, mãe. Me deixa sozinha- gritou ela lá de dentro.

-Você precisa comer e tomar os remédios.

Sem resposta.

Almira resolveu dar um tempo para a filha, pensando que talvez os remédios estivessem mexendo com ela.

Maraisa estava encolhida na cama, em posição fetal.
Nesse dia ela estava sentindo-se muito mal e culpada pela morte do filho. Ultimamente, ela vivia um turbilhão de sentimentos que insistiam em martelar sua cabeça.
"Eu deveria ter ficado em casa. Ele tinha só cinco meses"-pensava ela dando socos no colchão.

Maraisa passara uma semana praticamente dentro do quarto. Raramente saía ou comia alguma coisa. Sua condição física começou a chamar a atenção da família. Estava magra demais, com olheiras e tinha o rosto cansado.

Conforme prometera, Marília maraca a terapeuta para a próxima segunda-feira à tarde.
No dia combinado, a Doutora Renata chegou e foi recebida por Almira:
-Boa tarde! Tudo bem?

-Tudo, sim. Sou a doutora Renata. A Marília quem me indicou e pediu para que eu aceitasse esse caso e tivesse toda a paciência com a amiga.

-Pois é, doutora. Não sei se você vai conseguir falar com a Maraisa. Ela se recusa a falar com a gente. Quase não sai do quarto. Está cada dia pior. Eu já não sei mais o que fazer.

-Me leve até onde ela está.

Almira conduziu a terapeuta até a porta do quarto:
-Maraisa, a terapeuta da Marília está aqui, filha. Ela veio só porque a Marília pediu.

Sem resposta.

-Abre, meu amor.

A terapeuta adiantou-se:
-Você não precisa falar nada, se não quiser.

Maraisa, finalmente, abriu a porta:
-Só vou te receber em consideração a Marília- disse ela já virando as costas e deitando-se na cama.

As duas passaram uma hora em silêncio. A terapeuta anotou algumas coisas no caderninho e saiu com a promessa de que voltaria dali a dois dias.

A segunda sessão não fora diferente da primeira. Silêncio por parte de Maraisa e anotações feitas pela terapeuta.

A terceira sessão seguia exatamente igual as outras, quando a terapeuta resolveu provocar sua paciente:
-Você não é a primeira e nem a última pessoa a perder um filho.

Ao ouvir aquelas palavras, Maraisa virou-se furiosa:
-Você por acaso já perdeu algum? Sabe o que é sentir-se sendo mutilada sem anestesia? Como se arrancassem seu coração abrindo um buraco no seu peito e puxando-o com toda força? Acho que não, né? Então, é assim a dor da perda de um filho. O meu bebê tinha cinco meses. Cinco. Ele tinha a vida pela frente. Eu não pude protegê-lo. Eu era a mãe dele. Eu era a pessoa responsável por cuidar dele. E o que eu fiz? Fui fazer show! Fui para Europa e deixei meu filho em casa. Ah, onde estava a mãe dele? Na Europa! Eu nunca vou me perdoar pelo o que aconteceu! Nunca! Minha vida nunca mais vai ser a mesma! Quando eu consigo dormir, acordo de madrugada com crise de pânico pedindo para Deus me trazer ele de volta. Isso quando eu durmo porque a maioria das noites eu passo em claro. A comida não desce, você não vê graça em mais nada. As lembranças te atormentam e você não pode mudar a realidade. Você torna-se um inútil. Eu não mereço viver- ela dizia passando as mãos pelo rosto freneticamente.

-Isso, Maraisa, agora estamos fazendo progresso. Coloca pra fora tudo o que você está sentindo.

-Eu só queria morrer! Essa dor é insuportável. Saber que não vou poder vê-lo crescer, não ver como seria o rostinho dele, a personalidade. Ele foi arrancado de mim. Ele foi a melhor coisa que me aconteceu até hoje. Ele era o meu bebezinho. Meu filho tão amado! Depois de tudo que passei na gravidez dele, ele não poderia ter sido levado tão cedo. Quando finalmente eu achei que seria feliz para sempre, o Fabrício pegou o meu filho de cinco meses e colocou dentro de um carro. Ele não tinha o direito de fazer isso! Não era esse o combinado. Não era para ter acontecido. Eu nunca mais vou ser feliz de novo. Eu quero viver sozinha pra sempre só com a lembrança dele- ela dizia em meio a lágrimas.

-Maraisa, você me disse sobre sua perda e a resposta é não. Não perdi um filho, mas lido com isso todos os dias. Você está vivendo as fases do luto. Está ainda entre a negação e a raiva, o que é absolutamente normal, já que só faz um mês que seu bebê se foi. Pretendo trabalhar com você cada fase e te ajudar a passar por elas da melhor maneira possível. Quero que você enxergue em mim alguém que só veio para te ajudar. Quanto vai durar seu tratamento, eu não sei, mas espero que você seja persistente porque você é jovem e tem uma vida pela frente.

Maraisa olhava desconfiada.

-Eu sei que parece que essa ferida nunca vai fechar, mas acredite: você vai passar por isso e será uma pessoa melhor. Com o tempo, ela vai cicatrizando e você vai reagir-concluiu a terapeuta.

-Desculpa por tratá-la mal. Não era minha intenção -disse Maraisa um pouco envergonhada.

-Não se preocupe. Você está passando por um momento muito difícil. É natural que você tenha vontade que o mundo sinta o que você está sentindo. Você olha todo mundo seguindo a vida e não se conforma que eles não se sintam como você. Eu te entendo. Vamos combinar uma coisa: de agora em diante, você vai me dizer tudo o que está sentindo. Tudo mesmo, até sentimentos que talvez você ache insignificantes.

-Vou tentar.

-Preciso que você faça isso, assim você me ajuda a te ajudar.

-Prometo que vou tentar.

-Você passou pelo psiquiatra?

-Passei.

-Está tomando os remédios?

Ela hesitou.

-Você pode ser sincera comigo.

-Não estou. Minha família acha que sim.

-Tome os remédios, nesse início de reabilitação, eles vão te ajudar.

-Mas são muitos e eu não quero ficar dopada.

-Deixa eu ver sua receita.

Maraisa entregou a receita para a terapeuta.

Ela analisou bem e concluiu:
-Tome as vitaminas e esse anti-depressivo- disse ela apontando com o dedo- você se sentirá melhor.

Maraisa assentiu com a cabeça.

-Maraisa, eu quero te acompanhar mais de perto, por isso volto ainda essa semana. Vamos fazer o seguinte: nesse início, nos veremos três vezes por semana, conforme você for tendo progressos, diminuímos o número de sessões.

-Tá bom.

-Então, te vejo depois de amanhã.

-Certo, doutora.

A terapeuta saiu e Maraisa sentiu o peito um pouco mais leve por ter falado da sua dor, por ter colocado tudo aquilo pra fora e por ter encontrado uma pessoa que, finalmente, parecia entendê-la.

Depois da Tempestade Onde histórias criam vida. Descubra agora