Mudança de planos

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Já era quarta-feira e nada de Oto aparecer na empresa. Moretti andava irritado de um lado para o outro em sua sala, perguntando de 10 em 10 minutos se a secretária tinha conseguido falar com ele.

- Não, Sr. Moretti, o celular dele está desligado. Já deixei mensagem, recado na caixa postal e nada.

- Mas não é possível! Ele sumiu desde sexta-feira. Eu preciso falar com ele urgentemente. Não podemos perder essa chance....Não dá! Não dá!

Como quem entra em uma loja de um shopping vazio às 10h da manhã, Oto surgiu na porta tirando calmamente os óculos escuros e apoiando a mochila no balcão da recepção.
- E aí, tudo bem? Que cara é essa, Moretti?
- Que cara é essa? A de pau que você tem de aparecer com essa calma depois de sumir por dias é que não é, seu desgraçado!
- Ihhh... o que tem de novo nisso? Eu sempre saio por um tempo e volto. Perdi alguma coisa fantástica?
- Não perdemos....ainda! - Moretti se adiantou abrindo a porta de sua sala. - Anda, tenho um assunto sério e urgente para tratar com você. É a chance da nossa vida!

Oto sentou na cadeira já prevendo que vinha alguma bomba. Moretti quase sempre ostentava um sorriso debochado no rosto emoldurando seu humor ácido e cínico com tudo e todos, mas desta vez sua expressão era de um genuína felicidade exagerada.
- Fala logo, Moretti. O que de tão bom tem pra gente?
- Meus contatos do Brasil me procuraram...

Ao ouvir a palavra Brasil, Oto sentiu a temperatura de seu corpo cair, como se tivesse recebido um balde de água gelada. Pressentiu que este não seria um dia comum.

- Estão com um projeto grande. - continuou Moretti, os olhos brilhando. - Estão querendo virtualizar acervos de vários museus. Vários. E desenvolver sistemas de automatização de segurança e gestão. No Brasil tem poucas empresas com recursos e tecnologia para sustentar um projeto deste porte. É aí que a gente entra.

- Ham...e aí? - Oto estava impaciente.

- Eles querem que a gente entre nessa, uma parceria. Se a gente conseguir ganhar a licitação....a empresa deles tá afim de financiar o desenvolvimento do projeto de realidade virtual. Eles têm parcerias com investidores americanos. Vamos alçar voo alto, moleque! - e deu uma risada infantil quase maligna. - Seremos a primeira e a maior empresa no ramo.

- Tá...então você vai para o Brasil, é isso?

- Nós vamos, Oto. Nós vamos.

- Nós? Você tá louco. Eu não ponho meus pés naquele lugar.

- Louco está você se está pensando em jogar essa oportunidade pelos ares por causa de daddy issues.

A ironia de Moretti com sua história familiar tirou Oto do sério, mas ele tentou manter a pose de serenidade.

- Olha aqui, Moretti. Tudo bem...o projeto é legal, interessante, muito bom para a empresa. Mas eu não preciso estar lá. Eu posso fazer minha parte toda daqui ou de qualquer outro lugar. Eu não negocio nada. Vai você e representa a empresa.

- Ah, mas a minha galinha dos ovos de ouro está muito ingenuazinha hoje. Quem é o geniozinho das redes? O hacker de quem ninguém consegue esconder nada?

- Esconder? Como assim? A gente não tem vantagem nesta concorrência?

- Você me irrita quando se faz de idiota. A gente tem vantagem, mas somos uma empresa estrangeira. Mesmo com a parceria com essa empresa brasileira, a gente não pode arriscar perder essa chance. Se a gente entra, consegue monopolizar o setor. Não vai ter para ninguém. Sem falar que o sucesso da nossa empresa vai deixar a empresinha do Guerra no chão.

- Guerra? Ah, não....Não vai me dizer que você quer continuar nessa disputa com ele? Supera, Moretti. A sociedade que vocês tinham acabou há mais de uma década. E depois eu é que tenho daddy issues. Você que tem Guerra issues. Eu não vou me meter com nada ilegal para você continuar essa birrinha....

- Cala a boca, imbecil. "Não vou mimetercomnadailegal" - repetia com uma voz infantil e enjoada. - Pensa direito.

Nem a provocação de Oto conseguiu tirar o brilho sádico no olhar de Moretti.

- Se você conseguir as informações sobre o projeto de virtualização dos nossos concorrentes, não vai nem ter concorrência. A gente se antecipa e entra com o jogo ganho. Não vem bancar o santinho arrependido. Você sempre consegue informações privilegiadas para a gente.

- Não é bancar o santinho. Eu não tenho a menor necessidade de atuar no Brasil. A nossa empresa está aqui, a gente pode continuar aqui e....

- Você é burro? Você tem dinheiro para investir no desenvolvimento de realidade virtual, que é seu sonho?

- Não... - respondeu como se tivesse sido atingido por um golpe.

- Ah...Acho que você não prestou atenção nessa parte. É bom para mim, pessoalmente, mas é bom para você também. E eu não vou aceitar você destruir tudo por conta de sentimentalismo besta. Não precisa ir tomar café com bolo com o papai. A gente vai só para resolver negócios. E no Maranhão. A instituição que administra as licitações é em São Luís. Bem longe de casa, neném. Depois você fica no Rio só até estar tudo certo e assinado. Aí você põe sua bunda no avião e volta pra Portugal. Até te empresto meu jatinho.

Oto olhava para o chão tentando pensar rápido em uma solução para se desvencilhar dos planos de Moretti. De fato, era uma oportunidade única de conseguir um grande financiamento para o projeto de sua vida. Mas queria fazer isso sem ter que voltar ao Brasil. Ainda insistiu uma última vez:

- Tá certo. A gente entra na jogada. Mas eu posso hackear o sistema daqui mesmo.

- Não, não pode não. - Moretti abaixou se aproximando do rosto de Oto com um sorriso forçado. - Seu sentimentalismo sempre te deixa meio imbecil. Parece que eu estou de novo lidando com o Guerra. É um karma! A gente tem que se precaver. Nossos parceiros querem você lá para fazer isso. Tem risco e eles não querem ser pegos de surpresa. Nada pode dar errado, mas se der... não vão achar quem "errou". Se descobrirem e chegarem até Portugal, fica claro quem fez, né? Mas se isso for feito lá eles não vão conseguir achar. Se precisar, a gente joga no colo de outro.

- Eu já sou fichado no Brasil, Moretti. - Oto se sentia cada vez mais acuado.

- Mais um motivo para você não ser descoberto. - Moretti riu como se triunfasse sobre os argumentos desarticulados de Oto. E aí, vai arregar?

Oto olhou para Moretti por alguns segundos, sentindo-se desafiado. Seus pensamentos estavam confusos, mas por um instante prevaleceu a vontade de não deixar que seu passado o limitasse em seus objetivos. Levantou-se da cadeira e se aproximou de Moretti ao responder com a voz grave e firme:

- Eu vou. Nós vamos ganhar essa.

Moretti soltou uma risada alta, sentindo-se vitorioso. Segurou a cabeça de Oto com as duas mãos e deu um beijo em seu rosto.

- Eu sabia que meu menino do T.I não iria me desapontar.

Oto se desvencilhou de Moretti sem reagir à provocação.

- Para quando é isso?

- Pode ir se preparando. No início da semana que vem já partimos. Vamos no meu avião para ninguém saber ainda que você voltou. Por ora, oficialmente somente eu estarei no Brasil formalizando nossa parceria para entrarmos na licitação. Chegando no Brasil, você vai direto para o Maranhão. De carro. Invisível, como você saber ser. Lá você vai ficar em um hotel desses baratos, de beira de estrada. Daqueles que não conferem documento, nada.

- Ok. - limitou-se a dizer, resignado.

- Vê se não some até lá. - disse Moretti em tom de quem corrigia um adolescente rebelde.

Oto foi embora sem trabalhar naquele dia. Muita coisa tinha acontecido sem que tivesse tempo para digerir tudo aquilo. Em meia hora todos os seus planos tinham mudado. Em poucos dias estaria de volta ao Brasil como um criminoso que seu pai rejeitara. Sentia que estava perdendo o controle de sua vida.


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