Irreconhecível

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Oto abriu a porta e entrou como se arrastasse a si mesmo para dentro. Tirou a carteira, o celular e as chaves do bolso e jogou com desprezo em cima da cama impecavelmente arrumada. O quarto tinha um perfume suave da limpeza recente. O silêncio preenchia o ar, sendo brevemente rompido apenas pelo som vibrante e afastado dos poucos carros que passavam na rua àquela hora da madrugada. Nada era suficiente para que ele se sentisse melhor do que alguém estaria em um cativeiro. 

Estava no último andar do hotel. Aproximou-se da janela e afastou a cortina sem muita certeza de que queria de fato estar ali. Ficou um longo tempo com o olhar estático e perdido nos movimentos tão pequenos dos transeuntes na rua naquela distância. O dia começava a clarear.

Ainda tinha algumas horas para tentar dormir antes de sair para o trabalho. As olheiras profundas denunciavam o cansaço das duas noites mal dormidas, mas revelavam principalmente a exaustão de suas emoções. O cochilo inquieto no sofá parecia que tinha drenado suas últimas energias. 

Sentia-se perdido dentro de si mesmo. Estranhava seus pensamentos. Não conseguia sequer finalizar uma linha de raciocínio, uma análise dos fatos. Ainda não tinha coragem de relembrar cada momento que o levou a estar ali. Tinha a mente cansada de lutar contra as próprias ideias, tentando bloqueá-las. Desconhecia a si mesmo. Mas, naquele instante, estava exausto demais para tentar se achar. 

Tirou os sapatos e se despiu como se tirasse uma armadura pesada depois da batalha. Seu corpo reagia dolorido a cada movimento. Abriu o chuveiro no máximo da força. Água fria. Entrou de cabeça. A água ao menos levava embora as lágrimas que não queria derramar.

Deitou na cama por cima do edredom que a adornava. Tinha pouca esperança de que conseguiria dormir. Mas seu corpo exausto se desligou em poucos minutos. 

***

Brisa engoliu o resto de café frio que ainda estava na xícara. Aquele café da manhã tinha sido demorado tanto quanto indigesto. O café estar frio era apenas óbvio e já nem parecia tão ruim assim. 

- Ô, pequena. Não fica assim, não. Ele deve estar evitando brigar de novo. É normal, tá tudo muito recente. Você também precisa do seu tempo. - Tininha passava a mão pelo cabelo de Brisa tentando animá-la.

- Eu não entendo, Tininha. Eu também estou chateada com ele. Mas a gente não precisa conversar? Não precisa resolver esses problemas? Assim parece que ele já se decidiu. Desistiu da gente. 

- Talvez ele ache que você quis afastar ele. Que não queria conversar... Não agora.

- Não sei, Tininha. Ele tá estranho. Muito estranho. Eu não tô reconhecendo Oto. 

Brisa se levantou com uma expressão resoluta no rosto.

- Eu vou arrumar Aurora e vou visitar meu pai. Eu tô precisando sair daqui, antes que eu enlouqueça. Aí eu aproveito... para sondar se Oto tá indo trabalhar lá na construtora. Ao menos para saber se ele tá agindo normalmente com as outras coisas. Saber onde ele tá... 

- Isso, vai sim.

***

Guerra pegou Aurora do colo de Brisa. Fazia caretas para a neta, até que parou observando a filha.

- Tá tudo bem? Oto não veio?

- Não. Eu nem sei onde ele tá.

- Como assim?

- A gente teve uma briga. Foi feio, foi horrível - especificou desviando o olhar.

- Mas o que houve? Brigaram por quê?

- Por causa do clipe. Quer dizer, começou por isso, depois a coisa degringolou que eu nem sei mais...

- O clipe? Mas ele não estava te ajudando com isso?

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