Oto ouvia Guerra falar com o olhar titubeante, tentando não dispersar na conversa.
- Você parece preocupado, Oto. Ainda nem tocou no seu café. Aconteceu alguma coisa? - Guerra observou.
-É...Desculpa, eu estou mesmo um pouco agitado hoje, pensando em umas coisas. Mas eu estava ouvindo o que você estava falando.
- É alguma coisa do trabalho? Eu posso ajudar?
- Não, não. É sobre a Brisa. Eu andei buscando algumas informações sobre a família dela. A mãe, principalmente.
- A mãe que morreu no barco? Não é isso?
- Isso mesmo. Quando a gente visitou Mandacaru, eu soube mais algumas informações com as pessoas de lá. Aí aproveitei para ir ao porto da capital tentar achar qualquer pista. Porque por mais que naquela época as viagens fossem quase clandestinas, informais, sem nenhum tipo de controle, não é meramente uma questão administrativa. Se uma pessoa morreu dentro do barco, isso teria que ser notificado às autoridades. Em algum lugar as pessoas ficaram sabendo que uma mulher morreu naquele barco. O corpo teve que ser retirado, identificado, enterrado... Não é possível não ter nenhum registro disso.- argumentava com um tom de voz elevado.
- E você conseguiu alguma coisa?
- O nome dela. Só o nome mesmo, sem sobrenome. Quer dizer, o nome de uma mulher que morreu em um barco naquela época, que pode ser ela. Ainda é pouco, mas já é alguma coisa para quem não tinha nada. É isso que tá me tirando um pouco do ar. Não consigo parar de pensar nisso. Eu sinto que eu estou perto, que eu testou no caminho certo. - suspirou fundo. - O aniversário da Brisa é semana que vem. Eu queria muito poder dar alguma informação consistente sobre a família dela. Acho que isso é o melhor presente que eu poderia dar para ela. Mas para isso eu teria que ir até o Pará, que era o destino do tal barco onde esta mulher morreu.
- E por que você não vai? Não quer deixar ela sozinha com a bebê?
- Tem isso também, mas eu poderia até fazer uma viagem rápida. A questão é que a Brisa não sabe de nada disso. Eu não quis levantar falsas esperanças. Sabia que era um caso difícil e isso é uma questão muito importante para ela. É uma falta que ela sente muito. O pai eu acho muito difícil conseguir identificar, quase impossível. Talvez até identificando a mãe dê para saber de quem ela estava grávida, se era casada. Mas é uma trajetória muito mais difícil de traçar. Um caminho muito mais longo e incerto. Seria quase um milagre, um golpe de sorte do destino. Mas pelo menos a identidade da mãe, mesmo ela estando morta... Ela já sabe que a mãe morreu, é mesmo para saber quem ela era. Ter uma história, talvez um rosto, mesmo que numa foto. Ela estranharia eu fazer uma viagem agora, com a Aurora tendo só um mês. Eu teria que mentir para ela. Não quero fazer isso. Mesmo sendo por uma boa causa. Eu estou tentando pensar em alguma estratégia alternativa.- Oto se ajeitou na cadeira, um pouco constrangido. - Desculpa, eu estou falando demais. Eu estou desabafando, falando e tentando pensar ao mesmo tempo.
- Não se preocupe com isso. Eu quis saber, estamos conversando. Vejo também que você confiou em mim para contar isso. E é uma questão muito séria, de fato. Eu dou muito valor à família, Oto, e vejo que você também. É uma coisa que admiro em você. Mesmo você tendo problemas com sua família de origem, você não reproduziu isso na família que você formou. Muito pelo contrário. Acho louvável seu empenho em dar essa origem para a Brisa. Você tornou essa questão dela uma questão sua.
- Obrigado, Guerra. É muito importante mesmo para mim. Quando eu digo que daria minha vida pela Brisa não é mera expressão, da boca para fora. Eu sacrificaria tudo que fosse necessário. Muita coisa que não era relevante para mim passou a ser porque é para ela. Por ela. Quando eu ainda estava distante dos meus pais, eu sentia que a Brisa ficava incomodada porque era algo impensável para ela, difícil para ela entender. Como alguém que tem família, que sabe quem são pai e mãe, pode simplesmente escolher ignorar a existência deles? E ela que queria tanto saber ao menos o nome deles não teve a oportunidade.
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Dois mundos
FanfictionUma órfã de vida simples em Mandacaru, no interior do Maranhão. Criada em meio à natureza e imersa nas tradições do povo que a acolheu. Cantora e dançarina, mas também lavadeira, passadeira, costureira e o que mais fosse necessário na rotina de muit...