Capítulo 22

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Voltei para casa acompanhada de Ícaro, que como prometido me deixou na porta sã e salva, sem mais nenhum contato fisico, ou mesmo visual, eu ainda precisava aprender a lidar com mudanças repentinas dele.

 O jantar de Seline hoje mais parecia um banquete, o que foi uma pena por estar completamente sem fome. Não foi fácil ficar sentada na mesa enrolando com a comida enquanto ouvia um sermão de Kael. Fazer o que? Nem tudo eram flores em Nimalgia.

Ajudei a louça e subi para o meu quarto me despedindo dos dois, minha cabeça ainda girava com as informações de hoje, e como prometido a Cirino, não revelaríamos nada a ninguém. Nem mesmo a família Monte teria acesso a essa informação, o que me deixava ainda mais nervosa, não estava gostando muito do fato de esconder algo deles, ainda mais quando já suspeitavam que tivesse algo de errado. Ou mais errado.

A mesinha que decorava o meu quarto agora tinha um lindo vaso de flor em cima, e notei algumas fitas ao redor da cama que não estavam ali antes, pendendo como pequenos laços coloridos. Celine preocupada em cada detalhe.

Cai na cama ainda com o vestido e os sapatos nos pés, não tinha sono então não havia necessidade de me arrumar adequadamente para dormir.

Era tudo ainda tão confuso para mim, havia tantas incógnitas! Há menos de uma semana eu tinha uma vida...comum, ia a escola, treinava no basquete, saia com a Brenda pela cidade ouvindo suas histórias malucas, meus maiores desafios eram coisas comuns de escola, um trabalho atrasado, uma prova que me deixava nos nervos... e então...buumm! Eu já não era uma adolescente normal de dezesseis anos, agora eu era uma incógnita em um mundo paralelo ao que eu vivo, e que ninguém faz ideia da sua existência e de todos esses reinos. Era como se de repente eu me transformasse em um ponto de interrogação ambulante, somente perguntas, sem respostas.

As coisas estavam sendo perturbadoras e me dividindo ao meio, eu precisava voltar, e também precisava ajudar esse povo, esse reino. Ítalo da sua maldição! Quanto tempo mais ele teria? Seria o suficiente até que as coisas mudassem de fato? As dúvidas me corroíam.

Virei para o lado encarando a pilha de livros no chão. Já tinha dado uma olhada neles antes e todos vinham com o nome de Reno na contracapa, seus últimos estudos estavam ali ainda, guardados no quarto que um dia deveria ter pertencido a ele.

Os livros estavam organizados por tamanho, ao topo da pilha vinha o maior deles, um de capa verde, um pouco gasto nas pontas, mas seu conteúdo impecável. Lembro que logo na primeira página tinha um versinho. Meigo e fofo, talvez escrito na época de infância de Reno, já todos os demais conteúdos ainda eram complexos para mim, livros de idiomas, de línguas que nunca tinha ouvido falar, inúmeros livros de história, e alguns de magia, que pelo que eu pude entender era truques de ilusionismo, nada que realmente me atraísse.

Meus olhos vagaram por toda aquela pilha, quando um desconexo livro ao lado me chamou a atenção, era de capa preta e não pertencia ao acervo de Reno. Era o livro que pegara na Fênix. Tanta correria nos últimos dias que eu o havia esquecido ao lado dos demais, ainda que ele se destacasse, fazendo parecer os livros de escola completamente singelos. Reunindo um pouco de força me levantei e o trouxe para a cama comigo, questionando porque Nimalgia não poderia ter algum feitiço bizarro que fizessem as coisas levitarem até você. Tipo naquele filme da Matilda, onde a garotinha conseguia fazer tudo se mexer com o olhar. Às vezes, eu a invejava.

Com a capa preta e o título Da Ascenção a Queda de Defel em dourado, ele reluzia, ainda que tivesse um aspecto de antigo, provavelmente escrito no final da guerra entre Defel e Onor. Não consegui identificar nada enquanto folheava que me indicasse um período de sua produção, só narrava em detalhes à situação de Nimalgia quando os filhos da Galu ainda eram pequenos. Avencei algumas páginas. Descaradamente. Não gostava de fazer isso, mas tinha que chegar logo na parte final da história, tinha que obter alguma informação ali. Eu sentia em mim isso

Conforme as páginas iam passando ilustrações de Defel começavam a surgir, primeiro criança, depois um jovem, até o período de sua coroação, onde já tinha as completas características de um homem. Se eu tivesse visto aquele livro antes não teria me assustado tanto na Torre, mesmo ainda mais jovem do que o espectro que eu via, as semelhanças eram nítidas. Alguns quilinhos a mais, uma barba mais comprida e robusta, porem a essência permanecia a mesma, o olhar e a postura.

Já tinha percorrido mais da metade do livro e sentia o sono começar a me consumir, as palavras ficavam embaralhadas, lutei contra ele, mas já era quase uma batalha perdida, percorri mais algumas páginas aleatoriamente, até que parei em uma que trazia Defel já do jeito que eu o vi só que sem o dourado e a forma fantasmagórica, ele ainda estava vivo, provavelmente próximo dos seus últimos dias como Rei de Nimalgia. Senti a garganta fechar. Embaixo da grande foto um pequeno texto seguia.

Muitos acreditam nas maldições, mas poucos a entendem, Defel foi um Rei e homem integro em todas as suas formas, deu a vida por seu povo, como prometido a seu pai que o faria. Galu, no próprio inconsciente sabia do caráter do filho Sombrio, não foi por puro capricho que Defel herdou a maior parte das Terras, embora muitos contradigam minhas palavras, o Rei Galu sabia desde o nascimento de seu segundo filho o desastre que poderia vir a acontecer. O que não foi espanto, para este jovem autor, quando ao findar do dia a tropa vermelha e preta invadiu pelo solo de Nimalgia, espalhando o terror e o medo. O oposto. A queda de Nimalgia não se daria apenas pelo seu Rei, mas pelo seu povo, a tirania de Onor foi sagaz e enquanto a cena daquele episódio estiver na mente dos Nimalgianos, nada poderá ser desfeito. Muitos ainda morrerão pela maldição até que possam compreendê-la, mas para isso é necessário compreender Defel, não por seus mitos, mas por suas ações. Assim como qualquer Rei ele prezava pela valentia, e era inteligente o suficiente para entendê-la na sua forma mais pura, nas suas próprias palavras "Quando um ato de valentia é impulsionado pelo ódio, por mais benéfica que seja a ação, o mal continuará prevalecendo". Onor sabe disso, tão bem quanto Defel, embora não preze dos mesmos conceitos do irmão, uma atitude vil que levará ambos os reinos ao declínio. Um declínio que jamais se imaginou.

Sentei-me mais ereta na cama, algo dentro de minha mente me dizia que eu tinha descoberto o pote de ouro, por falta de expressão melhor, em Nimalgia, mas outra parte ainda impedia que tudo viesse à tona, havia fatos se conectando e me frustrava não conseguir compreender. Devia ser sono, era isso. Sono sempre atrapalhava. Deixei o livro de lado e deitei ainda com as últimas frases passando pela minha cabeça. Um ato de valentia.

Um ato de valentia... Ato de valentia...

Reino AmaldiçoadoOnde histórias criam vida. Descubra agora