Capítulo 28

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O rancho tinha apenas duas janelas altas e uma enorme porta na frente, apoiei minha mão nela insegura de prosseguir com aquilo, eu já me preparava para a dor que veria nos seus olhos, a fúria contida que agora deveria ter tomado conta dele todo.

Eu me preparei para isso e muito mais. Sabia que no momento que meus olhos pousassem nele nada disso mais adiantaria, porque força nenhuma seria o suficiente para suportar vê-lo assim. Engoli em seco empurrei lentamente a porta pesada que a cada arrastar produzia um rangido alto denunciando a entrada de alguém.

-SAI DAQUI! – O berro alto, cheio de ódio informou que eu estava certa com tudo aquilo que tinha tentado me preparar, pensei em recuar, respeita-lo em seu momento, mas eu não podia fazer isso agora, uma vez que cheguei aqui iria até o fim, empurrei novamente a porta com mais força, rangendo alto – EU DISSE PARA SAIR DAQUI!

Ouvi seus passos se aproximando da porta, eram pesados, fortes e decididos. Assim que o vão se tornou grande o suficiente eu entrei parando cara a cara com Ícaro.

-O que está fazendo aqui? Eu disse para sair daqui ou você não ouviu?! – Ríspido e gélido não lembrava em nada como ele estava da última vez em que o vi e nem da primeira vez, essa era cem vezes pior, cem vezes mais destruído.

-Ícaro...eu...eu sinto...

-NÃO! Por favor não diga isso, eu não suporto! Não venha me trazer lamentos, se eu quisesse não estaria aqui. – Seus punhos estavam fechados ao lado do corpo, rígido ele me fuzilava com o olhar a menos de trinta centímetros – Sai daqui, Stela, esse não é o melhor momento.

Dando as costas para mim o vi caminhar até uma bancada, onde suas mãos socavam a madeira do tampo com uma força brutal. Ele tremia inteiro embora eu suspeitasse que não estivesse chorando, Ícaro nutria raiva, não lamentos.

-Ele não gostaria de te ver assim.

-Por Defel, o que eu tenho que fazer para você entender? Eu não quero a sua companhia agora, não quero a companhia de ninguém! Não quero ver o sofrimento que está dentro de casa, nesse momento, eu não sou uma boa companhia, custa entender isso?!

Ele não se virou, ainda continuava rígido com os punhos quase enterrados na mesa. Eu entendia muito melhor agora o que Ítalo quis dizer sobre a destruição do irmão e compreendia perfeitamente sua preocupação.

-Não vim para lhe fazer companhia e muito menos pra chorar no seu ombro!

-O que veio fazer então? Ver se eu não tinha me matado? – Disse seco, cheio de ironia na voz.

-Você disse que quando eu tivesse uma ideia gostaria de fazer parte dela – No instante em que as palavras saíram pela minha boca ele se virou, a fúria dando lugar aos poucos para a curiosidade – Não temos muito tempo, então você pode ficar aí se destruindo ou vir comigo.

-O que... o que quer dizer? – Ele se aproximou de mim lentamente, inseguro de seus passos.

-Quero dizer que estou indo para Dalta, seu irmão tem apenas sete dias então é exatamente esse o tempo que eu tenho. – Ele ficou estarrecido por alguns segundos apenas me olhando – Você não precisa vir se quiser, só achei justo avisa-lo.

-E como pretende fazer isso?

-Não tenho muito tempo, vai vir junto ou não? – Cruzei os braços impaciente com sua demora, embora eu já soubesse a resposta.

-Você só pode estar sendo ingênua em fazer essa pergunta para mim, não vai entrar em Dalta sozinha sob hipótese alguma. - A fúria em seus olhos ainda estava ali porem a determinação começava a duelar internamente – Só me diga o que eu preciso fazer.

-Precisamos de roupas, comida e armamento.

-Eu arrumo o armamento, você cuida do resto.

Assenti para ele, tentando ocultar a dúvida que sentia em envolvê-lo nisso.

-Vou voltar para a casa de Kael, me encontre lá o mais rápido possível. – Dei as costas a ele já planejando tudo na cabeça em como escaparia do casal mais amoroso comigo em Nimalgia – Não bata na porta!

Disparei rancho a fora, sendo recebida pela grande lufada de ar frio da noite, corri até a casa passando pela cozinha e a sala vazia, na rua me despedi das pessoas que estavam ali sentadas, incluindo o pai de Ícaro e Cirino que conversava com ele e me olhou estranhamente quando passei apressada por eles.

De volta para rua corri o mais rápido que pude, estávamos agora lutando contra o relógio, e eu não permitiria ser derrotada. Já se fazia muito tarde, ninguém em sã consciência correria a essas horas pelas ruas desertas de Nimalgia, mas pensando bem, ninguém em sã consciência faria o que eu e Ícaro estávamos prestes a fazer.

Cheguei em casa e fechei a porta silenciosamente andando na ponta dos pés, as luzes estavam apagadas, algumas próximas ao sofá-pedra iluminavam parcamente, no silencio da casa, onde eu ouvia os roncos de Kael vindo do andar superior, fui até a cozinha e achei um prato delicioso em cima da mesa esperando por mim, senti as lagrimas escorrerem pelo rosto com a cena que eu via. Eles eram tão bons e tinham um coração tão grande, sabia que os magoaria quando não me encontrassem aqui amanhã, ainda que fosse por uma boa causa.

Peguei uma trouxinha atrás da porta e enchi-a com tudo que eu encontrava pela frente, até especiarias que nunca tinha visto. Quando me dei conta, tinha comida suficiente para nós dois, amarrei bem e desejei ter vindo para cá com uma bolsa. Em um quartinho ao lado, onde eles lavavam as roupas, encontrei em uma pilha, minha antiga calça e a blusa que vestia no meu primeiro dia, sem perder tempo troquei de roupa rapidamente, se fosse para enfrentar alguma coisa do outro lado nada me daria mais mobilidade do que calças.

Subindo para o andar de cima procurei pela porta próxima aos quartos, tateando com as mãos sua maçaneta, naquela pequena salinha era onde o casal guardava as capas mais pesadas. Assim que a encontrei apalpei atrás das texturas por algo que me lembrasse a que havia usado no Vale da Floresta, detectei duas e a puxei para fora. Aquilo bastaria.

Depois de roupas e comidas agora só me faltava à parte mais difícil, corri para o meu quarto peguei um lápis que ali eles denominavam como escrivura, e o livro sobre a vida de Defel e desci passando na frente do quarto deles fazendo o menor barulho possível e torcendo para que Kael não tivesse insônia hoje. Na cozinha arranquei do livro a última página em branco e deixei um recado para eles, não poderia deixar muitas explicações, mas eles tinham que saber o quanto eu valorizava tudo o que fizeram por mim, não havia terminado de escrever e escutei uma batida baixa, leve e ritmada na janela da frente. Peguei tudo, equilibrando mais ou menos com as mãos e sai. Foi tudo muito rápido, eu esperava que eles entendessem.

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