𝐁𝐞𝐦-𝐯𝐢𝐧𝐝𝐚𝐬 𝐚𝐨 𝐋𝐨𝐢𝐫𝐞! 𝐎 𝐥𝐚𝐫 𝐝𝐨𝐬 𝐚𝐬𝐬𝐚𝐬𝐬𝐢𝐧𝐨𝐬

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Camille

Tamborilo os dedos contra o volante, cantarolando Walkin' After Midnight vindo no volume máximo do alto falante do jipe

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Tamborilo os dedos contra o volante, cantarolando Walkin' After Midnight vindo no volume máximo do alto falante do jipe. Adèle me acompanha animada com a batida e arrisca a melodia no refrão da música. Eu gargalho ao fazer a curva acentuada, dando entrada na estrada que leva à Chartres.

Faz mais ou menos uma semana desde o pedido acanhado em me perguntar se por acaso gostaria de passar o feriado com a sua família. A princípio, fui tomada por uma enorme enxurrada de surpresa. No entanto, aceitei sem gaguejar. Adèle me observou com a expressão esperançosa e um tanto insegura.

E eu estou feliz. Muito mais do que feliz. Me sinto viva! Em todos esses anos matando, roubando e torturando esses homens, me vi como parte de um ser apático, preso na inércia de executar as missões de forma automática. Nunca namorei ninguém. Jamais soube a maneira certa de fazer isso. Gosto de sexo. E muito. Porém, todos os meus relacionamentos foram baseados nisso. Sexo. Mulheres aleatórias em boates. Em restaurantes. Livrarias. Precisava encontrar uma distração diante de tanta carnificina.

Mas aquilo tudo perdeu o sentido quando a conheci. Decerto, havia me apaixonado por Adèle pela primeira vista. Pode parecer bobagem, porém, é real. Uma noite. Bastou apenas uma noite conversando com ela por sei lá, cinco minutos? E me encontrei rejeitando o telefone de dezenas de mulheres na lista do celular. Passei dias recusando as investidas de Hanna para irmos aos clubes de strippers, optando em permanecer deitada sobre a cama e olhando o teto de vidro do meu quarto. Literalmente expulsei a garota que Adèle havia beijado para outro continente.

Sorrio ao relembrar do plano traçado com a inteligência de Hanna para armarmos a entrevista na CNN da Noruega. Provavelmente, a esse horário, Vilde se encontra ordenhando ovelhas. Na melhor das hipóteses.

No entanto, sinto a mandíbula apertar com a  recordação das mãos de Elena buscando as minhas em desespero na tentativa de retirá-las do aperto em seu pescoço. Os olhos verdes se apagando enquanto observava deliciosamente a vida se esvair deles.

Um segredo sujo. Um segredo no qual Adèle não precisa saber. Não é certo. Eu a salvei. E com certeza faria tudo outra vez para protegê-la.

Olho de soslaio para o meu amor.

Ela veste uma camisa xadrez com os primeiros três botões abertos, que devo admitir ter sido o motivo de quase vários acidentes nessa rodovia. A calça de cintura alta cotelê moldando perfeitamente os quadris e me encontro babando nos segundos os quais a perscruto. O cabelo está preso em um rabo de cavalo alto e apertado, deixando alguns fios loiros caírem ao redor do rosto em formato de coração.

-Não posso acreditar que nunca tenha ouvido Patsy Cline, Cariño! -Minha voz se torna alta e grossa sempre que volto ao espanhol e percebo, em vista ao sorriso largo, que Adèle se deleita no sotaque.-É um clássico, meu amor!

Ela acaricia meus dedos, enfeitados por variados anéis, inclusive o tão famoso de elefantes dourados. O sorriso pueril surgindo nos lábios rosados e tenho vontade de chorar.

Durante esses dezesseis anos sofrendo em tatames de luta, aprendendo a atirar corretamente nos pontos sensíveis como nuca, pescoço, coxas e articulações. Cuspindo sangue e sendo socada como um saco de batata murcha por garotos com o dobro do tamanho e da minha idade. Em todos esses momentos, sofri em silêncio. Sofri pela perda do meu pai. Da minha avó. Do abandono da minha mãe. Pelos hematomas que cercavam o meu corpo por conta do treinamento pesado de Ömer.
Eu aprendi a não chorar.

Ainda assim, aqui me encontro prendendo o quarto choro seguido em uma semana por causa dessa mulher. Me pego avaliando-a mais uma vez. E por um instante, consigo imaginar uma vida diferente. Uma vida sem sangue e som de balas sendo trocadas, junto com ossos se quebrando. Posso ver sua gargalhada preencher todos os cômodos de uma casa rústica de frente para a praia. Consigo imaginar nossos próprios filhos, e em como teriam seus olhos e as poucas sardas envolta do nariz.

-Eu te amo.

Pisco, saindo da dissociação repentina que havia me acometido. Na verdade, se tornou costumeira.

Adèle está com o rosto inclinado para mim, os olhos grandes sorrindo ao encostar as bochechas contra o banco. A mão esquerda resvala sobre o meu queixo e busco me manter concentrada na estrada, sorrindo feito boba. Volto à olha-lá de soslaio. O rosto sereno e calmo repousado contra o banco de couro do Jeep, enquanto o suspiro suave é liberto dos lábios entreabertos. Os olhos fechados. As pálpebras trêmulas abrigando diversos caracóis que na verdade são veias na pele translúcida dos seus olhos.

De súbito, acabo recordando de uma lenda, admirada por mim, da Mitologia Grega. Lembro claramente do meu pai contando-a na beira da praia, conforme caçávamos conchas para os colares da vovó.

Orfeu e Eurídice.

Sua amada esposa tinha sido picada por uma cobra venenosa e morrido logo em seguida. Orfeu, com o ardente amor que sentia por ela, recorreu ajuda a Hades (Deus dos Mortos) que o permitiu descer até o inferno.

No entanto, o único aviso feito por Hades foi que Orfeu entrasse e saísse do mundo inferior sem olhar para trás, confiante de que sua esposa estivesse o seguindo. Porém, nos últimos minutos, quase perto da porta de saída do inferno, a necessidade de sua devoção o anulou e Orfeu girou o corpo para vê-la. Por fim, Eurídice retornou ao mundo dos mortos.

A primordialidade de adoração que sentia por sua amada que o impediu de salvá-la daquele lugar. E por mais que eu tenha certeza do meu amor, da minha devoção por Adele, eu seria aquela que nunca olharia para trás.

Eu desceria até o inferno para busca-lá.

-Sua mãe sabe da minha ida ao chalé? -Indago, prestando atenção na rodovia e trocando a marcha do carro.

Adèle anui ao lado, bocejando. Seus olhos vagam pelo lado de fora no mesmo momento em que avistamos o castelo de Azay-le-Rideau, cercado pelo rio Indre. Adèle aponta com o semblante iluminado para a paisagem e ergo o canto dos lábios em um sorriso animado.

E de fato estou animada.

Falta um pouco mais de meia hora para chegarmos até o local enviado via gps por sua mãe. Atravessamos Tours, Amboise e finalmente Chenonceaux, onde encontraríamos o pequeno chalé, fruto da herança do seu pai, próximo das margens do rio Loire.

-Só por favor...-O tom de voz é suplicante e eu reviro os olhos ao notar suas mãos grudadas em sinal de prece. -Não fale nada sobre sua vida criminosa. Minha mãe não irá gostar de você logo de cara, mas pode buscar conquista-lá aos poucos.

Arqueio uma sobrancelha e adentro a comuna citada anteriormente. Adèle sorri com os dentes diante da expressão ofendida que tenho no rosto.

-Por qual motivo Dona Elisa não gostaria de mim? Não pareço ser convincente o suficiente?

-Não. -Diz sem rodeios e começa a retirar o cinto de segurança. Percebo pelo movimento inquieto dos braços e pernas que está puro nervos. -Não é nada pessoal com você. É só que...Minha mãe tem trauma de mulheres próximas a mim, entende? Tudo o que aconteceu com Elena mexeu muito com nós duas.

Concordo com a cabeça e aperto sua mão trêmula sobre o cinto de segurança. Adèle morde a ponta da unha do dedão.

-Eu sei, meu amor. Pode deixar que farei o possível para que ela goste de mim. Assim que souber o quão bem como a filha del...

𝐎 𝐒𝐄𝐆𝐑𝐄𝐃𝐎 𝐃𝐄 𝐌𝐎𝐍𝐓𝐌𝐀𝐑𝐓𝐑𝐄Onde histórias criam vida. Descubra agora