Capítulo 9 - A vida não para

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Então eles se reuniram novamente após as aulas terminarem, encontraram-se na mesma saída de emergência que era o ponto secreto deles, atrás do último prédio abandonado da faculdade, que antes servia para o curso de Artes Plásticas — agora era apenas um depósito fedorento.

A chuva havia passado, porém o cheiro de terra húmida continuava bem presente. Amontoados de neve se aglomeravam pelos prédios da faculdade, um clima gélido que combinava perfeitamente com a situação na qual aqueles jovens se encontravam.

Nenhum dos cinco parecia com vontade de falar primeiro, estavam com marcas de insônia, remorso e arrependimento estampados em suas faces pálidas. Porém alguém tinha que dar o primeiro passo e alçar a voz, senão aquele silêncio terrível continuaria como se estivessem num maldito funeral. Por isso, soltando uma baforada de fumaça antes de bater seu cigarro contra o canto da escada onde estava sentado para desprender as cinzas, Sidney Luiz Serra foi o primeiro a falar:

— Temos que seguir com nossas vidas.

Ríspido e com a voz rouca, sem deixar transparecer o grande conflito interno no qual sua mente mergulhara por causa da bendita ligação de seu pai naquela manhã. Ele ainda estava se decidindo se contava ou não sobre aquilo, mas, dada a forma pálida como seus amigos o olharam, o melhor provavelmente seria guardar esse segredo para si.

— Mas nós matamos alguém! — Jeneth exclamou, as mãos enluvadas se esfregando nervosamente — Além disso, e quanto aquela coisa que nós vimos?

— Eu concordo com o Sid — Matheus falou resoluto — Se aquele monstro era real ou apenas fruto de um delírio coletivo, o melhor seria esquecer. Ren está morto, nós o matamos, mas ninguém vai dar por falta dele.

— Não diga coisas tão cínicas — Jesse censurou o rapaz de pele amarela — É claro que uma hora ou outra vão dar por falta dele.

— Será? — Sidney voltou a falar — O Ren não tem família, apenas o avô que tá nas portas da morte. Os únicos que podem dar por falta dele seriam seus amigos, mas aquele Cara de Fuinha não tem amigos.

— Então recomenda apenas esquecermos isso e seguir com nossas vidas?

— Exatamente.

Dizendo isso, Sid se levantou, espanando um pouco de neve que caíra em suas botas. Ele jogou a bituca de cigarro longe e, com uma postura altiva, virou-se para os amigos.

— Jeneth tem razão, nós matamos alguém, mas que se foda, ninguém se importa.

Ele começou a andar por entre os montes de neve que recobriam tudo o que se podia ver, todavia a voz de Lina o fez parar:

— Os professores... — Lentamente, ela ajeitou seus óculos acima do nariz, seu semblante era uma mistura de mistério e frieza. — Eles vão dar por falta do Ren em algum momento. Mesmo que demore, não há como fugir, uma hora irão começar as buscas.

— E o quê? Sabe quantas pessoas desaparecem por dia?

— Mas a polícia pode conectar o desaparecimento dele conosco, afinal, todos sabem quem fazia bullying com o Ren.

— Lina tem razão — Jesse tomou a dianteira — Uma hora ou outra chegarão até nós.

— Quando isso acontecer, basta fingir demência. Vamos inventar que não estávamos com o Ren no dia do desaparecimento dele, ninguém nos viu indo para a floresta, não há testemunhas.

— Mas, Sid...

— Chega, Jesse! Acabou, caralho! Não quero mais ouvir sobre essa merda ou qualquer coisa relacionada ao Cara de Fuinha nunca mais.

Com isso, Sidney colocou um ponto final na conversa, afastando-se do grupo de amigos que tiveram as mais diversas reações: Jesse mordeu o lábio inferior para controlar a vontade de gritar sobre seu pecado; Matheus bufou irritado, mais irritado do que nunca esteve antes; Jeneth começou a chorar baixinho; já Lina olhou para as costas de Sid que sumiam conforme ele se afastava.

Ela o conhecia o suficientemente para saber que ele estava ocultando algo, porém o que seria?

Só o tempo responderia essa pergunta.

— É hora de voltarmos para os nossos dia a dia — Matheus disse, pegando a namorada pela mão — Vamos ao shopping comer alguma coisa, amor, pra esquecer essa merda toda.

Com um soluço quebradiço, Jeneth acenou, limpando as lágrimas que se acumulavam em seus olhos cheios de delineador e maquiagem. Os dois se retiraram logo em seguida, deixando Lina e Jesse para trás, no silêncio.

Isso até o Barbosa repentinamente sacar uma pergunta impertinente:

— Você quer se entregar, Lina?

A negra o encarou perplexa, como se ele tivesse dito a coisa mais absurda do mundo. Sim, ela sabia que havia cometido um pecado gravíssimo e sabia ainda mais que suas ações não sairiam impunes, porém se entregar...? Não, ela estava no seu último ano de Enfermagem, já começara a fazer estágios em hospitais da região, então por que tinha que se entregar e arruinar sua vida perfeita?

— Não. E sugiro que você não faça nenhuma idiotice — respondeu secamente.

Por fim, sem dizer mais nada, a Oliveira se despediu com um aceno de mão e voltou a caminhar para os prédios da faculdade, deixando Jesse sozinho com sua culpa.

Seria mesmo possível que nenhum de seus amigos tinham um pingo de moralidade? Porra, eles mataram alguém! Um pobre infeliz que tinha uma vida difícil só por culpa deles, e agora sugeriram apenas esquecer tudo e voltar para suas vidas? Como Jesse encararia seus pais se suas mãos estavam sujas de sangue? Não era possível que ele fosse o único que se sentia culpado.

E não era mesmo, pois Sidney estava mil vezes mais sobrecarregado do que os outros amigos. Porém, ah, ele era orgulhoso demais para admitir que estava sentindo falta do seu brinquedo particular.

Sid se lembrava da primeira vez que colocou os olhos em Ren Amorim; foi há três anos, na cerimonia de entrada para os calouros. Ele simplesmente se destacou por conta própria com aquele estúpido guarda-chuva preto, um suéter marrom, calças jeans e tênis escuros. Seus cabelos, sua pele, tudo nele era branquíssimo como um lírio recém-desabrochado, uma alvura imaculada que instintivamente atraiu a atenção do Serra.

Ele o queria, queria beijá-lo, experimentá-lo, segurar aquele corpinho franzino com suas mãos grandes. Que face ele mostraria no limiar do prazer enquanto era fodido? Aquele olhar de íris vermelhas e mortiças era capaz de expressar algo além de tédio? Ah, como o loiro o desejava, era algo possessivo que transcendia sua compreensão, ele apenas sabia que o queria.

Mas por que, ao invés de se aproximar com uma mão amiga, ele decidira recebê-lo com punhos cerrados?

Logo no primeiro dia — um dia chuvoso e frio — ficou bem claro que aqueles dois nunca seriam sequer amigos, quem dirá algo mais, pois Sidney empurrou o pobre Ren em uma poça de lama.

Suas palavras zombeteiras ainda ecoavam em sua memória:

— Opa, tu se sujou? Bem, um pouco de lama combina com um rato de laboratório como você.

Depois disso, seus amigos lentamente começaram a tornar as brincadeiras e pegadinhas cada vez mais sérias. Eles riam, pois era engraçado pra caralho do ponto de vista deles.

Deus, como eles eram imbecis.

Passando as mãos pelos cabelos loiros, Sidney apertou a mandíbula quando parou em frente a sua casa. Suspirando pesadamente, afastou os pensamentos e tentou colocar uma cara indiferente no rosto, pronto para encontrar seu pai reclamando sobre seu dia atarefado na delegacia ou ter que lidar com sua irmãzinha endiabrada.

Era isso, o homem que um dia ele amou agora estava morto e Sidney não podia se entregar ao luto — ele não se via no direito de fazer tal coisa reservada apenas para pessoas com moralidade.

O que Sidney Luiz Serra não sabia era que sua vida seria bombardeada com aqueles olhos mortiços mais uma vez, porém estes só teriam ódio para com ele.

Número de palavras: 1.273.

Kill BoyOnde histórias criam vida. Descubra agora