03 - Harcote

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⛧╾──╼⛧
BILLIE

Na colina que subia o campus, me sentei na balaustrada do pórtico da biblioteca e ajeitei os óculos de sol no nariz. A armação era enorme e me fazia parecer um inseto, mas a lente era a mais escura que consegui encontrar ao longo das férias, quase escura demais para enxergar. Infelizmente, não o suficiente para obscurecer o que acontecia colina abaixo: Dia da Mudança no Colégio Harcote.

Torci a boca em uma careta que provavelmente ficaria estampada na minha cara até chegarem as férias em junho.

Eu já tinha passado pelo Dia da Mudança duas vezes — deslumbrada, no primeiro ano, e exausta, no segundo —, e aquele não era diferente. Era todo um teatro, cheio de tradições inventadas, como o fato do corpo docente precisar usar capas compridas e pretas no primeiro dia de aula, apesar de o calor úmido no norte de Nova York fazer a gente se sentir esmagado em um sovaco. Parecia até que Atherton tinha medo de que não fossem reconhecíveis como vampiros caso não seguissem os conselhos de moda dos desenhos animados. O propósito todo era dar aos pais vampiros superprotetores a impressão de que confiavam seus preciosos Sangue-Frescos a uma instituição renomada, tão antiga quanto eles — assim, seria mais fácil esquecer que Atherton só pusera as mãos no colégio e o vampirizara vinte e cinco anos antes.

Bati o calcanhar do tênis na grade de madeira repetidamente. Eu tinha chegado havia menos de três horas e já sentia os nós se formando nos ombros, a tensão crescendo no maxilar. Era difícil acreditar que, ainda de manhã, eu me sentia até um pouco animada para voltar ao colégio. De volta ao campus, contudo, ficou óbvio que três meses presa em casa com meus pais tinham danificado minha capacidade mental. Eu confundira o desespero para fugir deles com um desejo de voltar a Harcote.

Descendo o campus, entre as famílias vampíricas abrigadas sob guarda-sóis de seda preta e enormes guarda-chuvas de golfe, notei Ebonhart, a professora de Ética Vampírica. Ela estava secando a testa com um lencinho de renda. Ebonhart era uma vampira tradicionalista, uma sanguessuga vitoriana das antigas — literalmente, pois tinha sido transformada cento e cinquenta anos antes. Ela ainda usava os mesmos trajes de luto, com espartilho e tudo. As saias dela tinham manchas de sangue da época em que ainda era possível se alimentar de humanos. Ela visivelmente se continha para não recriminar todas as garotas que ousassem ir de regata ao Jantar Formal, mas era claro que também não gostava das minhas camisas de botão conservadoras. Ebonhart também era a intendente da Hunter, minha residência daquele ano. Mesmo sem ela, eu já tinha motivos o suficiente para evitar a casa.

Ao redor de Ebonhart, os serventes — humanos hipnotizados que mal sabiam o que estavam fazendo — solicitamente tiravam as malas de SUVs de luxo no estacionamento. Todo ano havia uns baús que, juro, deviam ser da era do Titanic , porque vampiros eram incapazes de deixar o passado para trás. Alguns dos pais já estavam começando a se emocionar com a ideia de ficar um semestre todo longe de seus queridos monstrinhos. Meus pais tinham agido igual da primeira vez, mas desde então eu ia para o colégio sem eles; no entanto, quando foi a vez do meu irmão, minha mãe se despediu com lágrimas nos quatro Dias da Mudança, e ainda arrastou nosso presancestral para o Dia dos Descendentes em novembro. Um calouro estava cometendo o erro trágico de abraçar a mamãezinha bem na frente de todo mundo; eu imaginava que sua reputação só teria salvação lá para as férias de primavera, se tanto.

O resto do estimado corpo discente de Harcote — os Melhores dos Melhores, filhos dos sempre-vivos e nunca-mortos, símbolos especiais e únicos de nossa perseverança diante do Perigo, e colegas queridos desta que vos fala — estava agindo que nem os palhaços selvagens que sempre eram sem supervisão. Corriam a galope pelo gramado, gritavam das janelas das residências e pulavam em abraços como se tivessem acabado de voltar da guerra, e não de três meses de férias. Eu praticamente conseguia escutá-los comparando fofocas de redes sociais, mesmo de longe: sabe quem acabou de voltar de uma temporada como modelo em Milão? Sabia que fulaninho saiu em turnê com um grupo de K-pop? Como bons harcotinhos, tentavam estabelecer rapidamente quem tinha ficado mais gostoso, mais rico ou mais charmoso nas férias, e quem estaria no alto do castelo de cartas social do ano. Podiam até sorrir e se fingir de simpáticos, mas todo mundo, era óbvio, tinha presas. Destruiriam uns aos outros, se necessário.

SANGUE FRESCO, billie eilishOnde histórias criam vida. Descubra agora