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BILLIEDesci a escada da Hunter dois degraus por vez até sair pelo gramado, correndo na direção da quadra esportiva, sem motivo além da necessidade ardente de estar em outro lugar . A reunião da residência começaria em breve, e Ebonhart ficaria furiosa se eu me atrasasse, mas ela já vivia furiosa comigo de qualquer jeito.
Naquele momento, eu precisava era me recuperar da porrada que o destino me dera.
Cacete, Samantha Clarke.
Na minha escola.
Na minha casa.
No meu quarto.
A ideia de morar com Chloe tinha sido tão atraente quanto viver ao lado de um escorpião enfiado em pele humana, mas aquilo, impossivelmente, era muito pior.
Acabei no campo vazio de lacrosse, a grama de um verde tão alegre que, dada a situação, chegava a ofender. Fui batendo os pés até o último andar da arquibancada de metal, e me joguei de costas fazendo barulho. O metal estava quente.
Deveria haver algum tipo de lei contra aquilo, tipo uma prescrição. Se fizesse três anos que sua melhor amiga tinha desaparecido sem nem se despedir, você não seria obrigada a morar com ela. Se a última comunicação com a pessoa em questão fosse uma mensagem que dizia Nunca mais quero falar com você, não se esperaria que você passasse nove meses dormindo em uma cama a menos de um metro da dela. Se você não fizesse ideia do que dera errado, mas estivesse disposta a aceitar que provavelmente era mesmo sua culpa, não teria que revisitar uma das piores épocas da sua vida.
Obviamente vivíamos em um mundo sem justiça, pois tais leis não existiam.
Não era que eu nunca tivesse imaginado que Sam pudesse aparecer em Harcote. Eu imaginara exatamente a mesma situação aproximadamente um zilhão de vezes, e admito que, em mais de uma ocasião — tá, muito mais de uma —, não conseguira resistir a dar uma olhada nas redes sociais dela. Não era como se eu não soubesse que ela ainda deixava comprido o cabelo sedoso e castanho-arruivado, que na luz certa brilhava em vermelho, nem que ainda tinha as mesmas bochechas redondas que encolhiam os olhos dela ao sorrir. No entanto, nada disso me preparara para de fato ver Sam de novo, para a sensação daqueles olhos cor de mel, daquelas íris esverdeadas, ardendo de pura fúria ao me reconhecer.
Eu a vi parada ali e, de repente, senti os contornos do meu coração, tremendo no meu peito que nem um coelhinho apavorado, à espera da morte. Deve ser assim que os humanos se sentem, pensei, logo antes de serem hipnotizados.
Bati com o pé na arquibancada, um baque que reverberou pelo meu crânio. A gente se conheceu quando ela tinha nove anos e eu tinha acabado de fazer dez. Ficamos inseparáveis logo de cara. Ela era a única pessoa com quem eu queria estar, e sei que ela sentia exatamente o mesmo por mim. Bem, a partir de certo ponto, não era mais exatamente o mesmo, mas nem eu entendia o verdadeiro significado do que eu sentia na época. Até que, um dia, ela e a mãe simplesmente foram embora , desapareceram com todos os seus pertences. Sem explicação, sem despedida.
Eu nunca tinha me sentido tão mal, como se tivesse uma ferida aberta no peito, incapaz de sarar. Quando minha mãe me contou que as Clarke tinham ido embora, eu enterrei a cara no travesseiro para chorar e lá fiquei até não restarem mais lágrimas. Meu sofrimento devia ter sido especialmente grave, porque até minha mãe — cuja capacidade emocional se assemelhava à de uma tartaruga de trezentos anos — chegou a tentar me reconfortar. Eu ainda não tinha saído do armário para ela na época, mas poderia jurar que ela sabia o que estava acontecendo.
Era coração partido.
Aproximadamente 33 meses sem nenhuma comunicação não tinham feito nada para mudar o fato de que Sam tinha a dúbia honra do título de Primeira Paixonite de Billie Eilish. Vê-la outra vez — no meio do quarto que íamos passar meses dividindo — tinha confirmado esse título com a sutileza de uma marretada.
Eu me levantei um pouco, apoiada nos cotovelos, e olhei para a quadra do conjunto residencial feminino. As reuniões das residências talvez já tivessem começado. Ajeitei os óculos no rosto e voltei a me deitar.
Não era como se Harcote oferecesse muitas oportunidades de substituir Primeira Paixonite por Primeira Namorada. A única outra garota queer assumida que eu tinha conhecido no colégio estava no quarto ano quando eu estava no primeiro, e era maneira demais para saber da minha existência; desde que ela se formou, sigo reinando invicta no cargo de Lésbica Oficial do campus.
Honestamente, o posto tinha suas vantagens, como as garotas que perguntavam discretamente se eu queria beijá-las. Elas nunca queriam saber se eu queria beijá-las de verdade — só supunham que eu queria, porque Sapatão É Assim —, mas era o jeito delas de dizer que gostariam de tentar me beijar. Como se estivessem me fazendo um favor. Algumas chegavam a acrescentar algum comentário sobre estarem curiosas, quererem saber se era diferente com garotas. Não que eu desse a mínima para a motivação delas; eu não era terapeuta delas, nem mesmo amiga.
Obviamente, eu sempre as beijava mesmo assim.
Por que não deveria me divertir um pouco? Elas estavam se aproveitando de mim, claro, mas era bom vê-las reconhecer que eu tinha algo que elas desejavam. Além do mais, era gostoso demais ver as harcotinhas perfeitinhas com medo de fazer algo que não deveriam — mesmo que fosse uma doideira do caralho elas acreditarem que beijar garotas se encaixava em tal categoria.
A desvantagem óbvia era que nenhuma dessas garotas se tornaria cliente fiel da Barraca do Beijo da Billie. Elas normalmente deixavam isso claro logo que o beijo acabava, então o que vinha depois era menos divertido. Havia uma alquimia cruel naqueles pequenos lembretes. Transformavam uma conquista divertida em uma rejeição de alguém que eu nem quisera para começo de conversa. A maioria das garotas cumpria o prometido: um beijo, e estava resolvido.
Exceto por uma. Eu não conseguia entender o sentido de implorar para alguém tirar seu sutiã e depois fingir que a pessoa era o horror da sua existência, mas, sinceramente, muito do que Chloe fazia fugia à minha compreensão.
Mas e se Sam pudesse mudar aquilo tudo?
Se controla, pensei, me endireitando tão rápido que fiquei até tonta. Sam não tinha brotado de um sonho para virar minha namorada . Até pensar na palavra namorada me parecia idiotice. Na vida real, Sam nem queria me conhecer, muito menos ser minha amiga. Além do mais — e disso eu me lembrava vividamente —, Sam era hétero. Meu sexto sentido lésbico saberia se não fosse.
Eu me permiti sorrir, pelo menos um pouquinho, ao pensar nela me pedindo meu pronome. Nunca ouvira tal pergunta de vampiros, apesar de saber que podia ser comum entre certos humanos. No entanto, aquilo só indicava que Sam passara muito tempo entre humanos. Ela podia ser diferente das outras garotas de Harcote por enquanto, mas não continuaria sendo por muito tempo. Seria burrice esperar outra coisa.
E eu não era burra.
Pelo menos tentaria não ser, dali em diante.
Estalei os dedos e desci a arquibancada batendo os pés com mais força ainda, para cada passo ecoar pela quadra.
Eu me recusava a sair magoada, muito menos em Harcote, e muito menos por Samantha Clarke.
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SANGUE FRESCO, billie eilish
ParanormalSam Clarke e sua mãe são duas vampiras vivendo entre os humanos que precisam se esforçar para pagar as contas e comprar Hema, o sangue sintético caríssimo de que todos os vampiros necessitam para sobreviver, desde que a humanidade foi quase inteiram...