Separados por um sobrenome

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Antes da maldição

TUDO ERA BRANCO.

O chão, o céu, as árvores.

Ela parou na frente de um galho. Seus apêndices mais pareciam dedos negros e magrelos. Observou a figura a sua frente, atrás dos mesmos galhos, como se aquelas garras os separassem. Ele estava de costas a procurá-la. Desde sua súbita visão no lago, onde os dois se contemplaram depois de tanto tempo que ela havia sumido, Phillip a procurava loucamente. Na cidade, na floresta, nos campos. Em tudo.

Criska usava uma capa preta, o capuz escondia suas melenas vermelhas. Suspirou, então ele virou-se. Grigori. Nome amaldiçoado pelas minhas irmãs. Ele era um Vamber e pior, era o futuro líder. Separados por um nome. Por dois clãs. Por uma disputa que não era deles. Mas a maldição era toda dela, não podia fazer isso. Não podia ficar com ele. E agora, no dia em que completava dezoito anos, no dia do ritual, estava disposta a lhe falar a verdade. Talvez ele a matasse bem ali.

— Criska – sua boca abriu, mas as palavras não saíram. Os flocos brancos caindo em seus cabelos negros – eu encontrei o bilhete que deixou – sorriu, retirando o pedaço de papel amaçado do bolso, indo até ela e estendendo a mão para tocar em seu rosto, então deteve-se e fez uma cara dolorida – por quê? Por que sumiu assim? Tudo o que planejamos... o beijo... o que lhe disse... não significou nada? me diga, Criska, eu sou tão insignificante assim para você? Se não me amas diga logo e eu aceitarei... mesmo que minha alma sofra pelo resto de minha vida.

Ela prendeu a respiração, contendo as lágrimas.

— Eu o amo... o amo com toda a minha alma, antes mesmo de saber o que era amar – foi um sussurro doído, apesar de saber que não tinha o direito de lhe cobrar nada – mas não podemos ficar juntos, Phillip.

— Era apenas isso que eu precisava ouvir, não me importa os outros detalhes, não me importa seu sobrenome ou sua origem – levou a mão ao bolso do casaco e apertou algo ali, mas antes que retirasse a bruxa interrompeu seu belo discurso.

— Mas seu sobrenome e sua origem importam para mim e para os meus.

Phillip ficou atônito.

— Então me diga o que falta? O que de valor eu preciso ter para que sejas minha e eu irei até o inferno para conseguir.

— Não podemos ficar juntos, porque você é um Vamber, Phil.

O Grigori afastou-se bruscamente.

— Como sabe da congregação? – ele arqueou uma sobrancelha e então entendeu, só não quis aceitar a verdade – não... você... você é humana. Se fosse um demônio eu sentiria – ele elevou a voz – diga que é mentira!

— Não sou um demônio – respondeu firme, lembrando-se da grande barreira entre Vambers e bruxas – mas sou uma bruxa. Não pedi para nascer com esses dons, não pedi para nascer assim, não pedi para nascer nesse mundo, mas não me envergonho de ser quem sou. – Suspirou fundo, erguendo o queixo e deixando o olhar firme, lembrando-se de suas raízes – eu sou Criska Feuer, a Última bruxa do Clã do Fogo, herdeira das chamas dos espíritos. E você ainda não pode me chamar de demônio.

O Grigori abriu a boca ao ouvir aquilo. Mas a última parte prevaleceu.

— Ainda?

— O ritual...

— Estou ciente deste rito hediondo. Toda a congregação sabe. Um ritual satânico onde aquelas malditas submetem humanas a vender a alma.

— Nenhumas delas foi obrigada, Phillip. Foi uma escolha. Um escudo. Um caminho de fuga tenebroso e sem volta para escapar de vocês.

Essa é sua escolha então?

— Não – o encarou nos olhos – é meu destino.

Phillip irritou-se. Levou as mãos à cabeça, chutou um montículo de neve, gesticulando e apertando os punhos. Criska achou que ele realmente fosse lhe matar. Respirou pesado algumas vezes até se acalmar. Cerrou os olhos e suspirou.

— Eu deixo tudo, Criska – então do bolso puxou um anel prateado com finos desenhos no metal e uma pequena pedra esverdeada. Lhe estendeu, já segurando em sua mão. Foi tão repentino que ela se espantou, esperava qualquer coisa, um repúdio, um adeus, a morte, menos isso – tudo. Os Vambers, minha família, meu sobrenome, em troca do seu amor. Mas você terá que fugir comigo e esquecer a irmandade.

A mulher esboçou um sorriso. Dois cristais rolaram em seu rosto. Ele a amava ao ponto de deixar tudo. Sua alma gritava sim, estava transbordando de felicidade. Sim. Sim. Sim.

— Não – as lágrimas se converteram em dor – eu não posso fugir, Phil. Um dia você irá entender meu propósito. Até esse dia chegar, até o dia em que não me odiar mais... saiba eu te amarei como a primeira vez em que te vi.

Ele sorriu amargamente, baixando a mão.

— Irá demorar?

— Eu não sei.

— Se demorar muito, eu estarei velho e você não me reconhecerá.

— Minhas chamas sempre o reconhecerão. Não importa onde e quando.

Ele fitou o céu. Os olhos marejados e a garganta embargada. Nenhum consolo. Apenas o frio.

— Adeus, Criska. 

Despertar: entre a ordem e o caosOnde histórias criam vida. Descubra agora