Uma visita ao cemitério

20 5 1
                                    

Rio de Janeiro,10 de janeiro, dias atuais

A LÁPIDE ESTAVA GASTA, úmida da chuva da noite anterior. Uma brisa mórbida passeou entre os túmulos. A garota passou a pontas dos dedos sobre a superfície áspera do cimento e limpou algumas folhas mortas, revelando a identificação.

"Alexander Scherer *20.11.1984 +10.01.200*"

— Oi– ela sussurrou.

Usava um vestido branco, de alças, com flores vermelhas e o moletom velho e surrado a cobrir-lhe os ombros, era verão, então vez por outra o céu fechava-se em chumbo e a chuva caia aos pedaços. O tênis gasto e sujo da lama negra da chuva da noite anterior. Se agachou e soltou um suspiro pesado, digno da atmosfera que pedem os cemitérios. A cascata de cabelos caiu em seu rosto como cortinas. Prendeu-os de qualquer jeito com um elástico.

Então começou seu monólogo, como era de praxe, talvez esperando uma resposta que nunca viria.

— Ontem fiz a prova de admissão, não sei quando chega o resultado, talvez seja a chance para eu sair desse lugar amaldiçoado... talvez quando eu for, essas coisas também vão embora... – ela vacilou na voz e sorriu – como se ir embora fosse apagar minha culpa. Lá no fundo eu sei que fui eu quem amaldiçoei esse lugar... se eu não tivesse nascido você ainda estaria vivo. Mas o senhor me perdoa, não é? – seu olhar recaiu sobre uma velha árvore de tronco enrugado que jazia solitária no meio do cemitério, a fazer sombra a algumas lápides. Esperou um "eu te perdoo" que nunca sairia da boca de seu pai. O que vinha sempre eram as sombras. Sempre a repetir o mesmo e aquele lugar mórbido era o ambiente preferido delas.

Uma mão pairou em seu ombro.

— Está na hora de ir – a mulher falou com os mesmos olhos cansados de sempre, as sacolas das compras a pender-lhe o corpo para o lado, os cabelos desgrenhados presos de qualquer jeito e profundas olheiras que arroxeavam a cada noite não dormida.

A garota deixou cair sobre a lápide a rosa branca que trazia nas mãos, uma em meio muitas ressecadas pelo tempo. Sempre terminava assim. Com as rosas brancas e ela nem sabia a importância delas ainda.

Chegaram a uma pequena casa rosada, meio desbotada pelo tempo – uma em meio muitas amontoadas em cima de um morro. Organizou as compras, colocou seu aventalzinho azul com nuvens e correu até os fundos.

(uma pequena horta)

Hortaliças, Legumes, vegetais, flores, plantas medicinais: agrião, alfazema, alecrim, arnica, boldo, camomila, gengibre, boldo, hortelã e cravo-da-índia.

Colheu algumas folhas verdes para temperar a comida.

Três pequenas sombras, do tamanho de um punho, brincavam entre o pé da roseira branca, elas saltitaram até onde os dedos da menina passeavam pela terra molhada. Cheiraram a alfazema, fazendo um burburinho de estalo.

­­— Eu já disse que não quero vocês na minha horta – ela riu-se, eles eram diferentes das outras sombras; geralmente esses carinhas se escondiam em jardins e lugares com muitas plantas e não falavam nada, apenas brincavam; ela os chamava de sombras bebê. Apesar do nome bonzinho, ainda eram sombras – vamos lá, caiam fora daí! Arrancou um pé de agrião pela raiz, onde a sombrinha se agarrava e a jogou para o alto; o serzinho flutuou e caiu na mureta de tijolos vermelhos.

— Tá falando com as planta de novo?

Uma vozinha soou da laje acima do muro. Ela levantou os olhos contra o sol. Lençóis esvoaçavam como capas e duas crianças pendiam em sua direção.

— Ah... não.. eram... é... são insetos.

Logo uma mulherzinha baixinha surgiu em meio a roupa no varal e expulsou as crianças em meio seus chiados "Eu já não disse que não quero vocês falando com essa daí."

Ninguém queria seus filhos falando "com aquela ali" isso era certo. Mas a garota não pôde deixar de pender os braços se maldizendo pela desculpa fraquíssima que deu.

Sua mãe irrompeu a porta.

— Vai ficar aí até quando? Preciso ir trabalhar – esticou a mão magra e entre os dedos compridos tinha um papel – acabaram de deixar um recado pra você.

Querida Ellie

Gostaria que viesse me ajudar.

Como já sabe, vou me mudar hoje.

Sara

— Você não falou com a senhora Sara? Ela vai se mudar. Achei...

— É uma perda de tempo interferir na vida das pessoas. – Marina falou com apatia. Foi até a cristaleira e pegou a carteira de cigarros – se vai ajudar vai logo. Quando eu voltar à noite do trabalho não quero ter que fazer a janta – a mulher se reclinou na cadeira de madeira enquanto tentava acender o cigarro.

A garota franziu o cenho. Não respondeu o comentário, apensas acenou com a cabeça e saiu novamente. Afinal, desde que o pai morrera parecia que vivia sozinha naquela casa, a mãe apenas respirava e fazia as coisas cotidianas remotamente como uma boneca de pilha ou como se alguém a tivesse dado corda, no fundo ela a culpava. Deixava isso transparecer na forma como a tratava, na forma como nunca a chamava de filha ou na forma como se matava lentamente com os malditos cigarros. E Ellie também se culpava por vê-la naquele estado. Afinal, era sua culpa. Talvez fosse melhor que ela morresse logo... estacou de ante de tal pensamento, se repreendendo mil vezes. Sempre que fitava os olhos de Marina eles lhe diziam isso "espero que eu morra logo e não tenha mais que olhar para sua cara", por isso, o evitava fazer. 

Despertar: entre a ordem e o caosOnde histórias criam vida. Descubra agora