Tudo é sobre ela.

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•• EU, VOCÊ e o que não dizemos! ••
Quando os olhos falam, as palavras silenciam.
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"Mas, ainda dói o meu coração. E ainda que não bata ele está se quebrando." - NOIVA CADÁVER

DURANTE SEMANAS, vasculhei as mensagens daquele celular, não apenas em busca de pistas, mas tentando, desesperadamente, resgatar também minha própria memória. Era como se cada palavra lida fosse uma chave, mas nenhuma delas parecia abrir a porta certa. As lembranças de Chloé, fragmentadas, flutuavam diante de mim, sempre fora de alcance, uma imagem desfocada em meio à neblina da minha mente. Eu tinha recebido a dádiva de uma segunda chance, mas a vida parecia testar minha paciência a cada instante, negando-me aquilo que eu mais desejava: minhas lembranças. O que adiantava estar de volta se eu não sabia de onde tinha vindo?

Quando recebi alta, o vazio dentro de mim só se aprofundou. Meu corpo, ainda se recuperando dessa travessia entre a vida e a morte, avançava em um ritmo que não era o meu. Sempre fui uma pessoa ativa, capaz de controlar meu mundo com eficiência, e agora me via dependente. Cada movimento, cada refeição, era uma concessão de alguém. Sentia-me como um intruso na vida dos outros, um peso morto que os tirava de suas rotinas apenas para que eu pudesse existir mais um dia.

Agora, sentado no jardim, o sol acaricia minha pele pálida, como se estivesse me lembrando que, apesar de tudo, eu ainda estava aqui. Era reconfortante e estranho, ao mesmo tempo. Olho para o horizonte, tentando absorver essa paz que o sol me oferece, enquanto minha mente, teimosa, retorna àquela última mensagem. A que chegou pouco antes da escuridão. Releio suas palavras na minha mente, buscando algum fragmento de sentido, algum indício de quem eu era naquela noite. Mas tudo que encontro é o mesmo vazio, uma resposta que não consigo alcançar.
E, mesmo assim, eu me pergunto se Chloé também está lá, em algum lugar, esperando que eu me lembre.

Uma nova notificação.
Mensagem de texto recebida.
Chloé 🐞
"Eu deixei o presente que deu de Natal dentro da sua mochila, não posso seguir em frente quando tudo que aquela caixa de música faz, é me lembrar de você cada vez que toca. Eu cansei de esperar por um sinal seu, não serei mais a sua Joaninha. Adeus Donavan."

Reviro os olhos, inconformado, enquanto a imagem de Chloé me atormentava. O que havia acontecido para ela enviar essa mensagem? Que erro terrível eu cometera para causar uma dor tão profunda? A falta de respostas era um peso insuportável, uma tortura constante que parecia me consumir de dentro para fora. A frustração crescia em meu peito, como um fogo que não podia ser apagado, e, junto a ela, a raiva. Não de Chloé, mas de mim mesmo - por ter sido tão fraco, tão cego, tão impotente diante de algo que, claramente, deveria ter visto. Eu me odiava por não lembrar, por não ter feito nada antes. Mas uma coisa era certa: o que quer que eu tivesse feito no passado, não voltaria a acontecer. Não deixaria a história se repetir.

Meus pensamentos se dissipam no momento em que sinto a presença leve de Chloé se aproximando. Ela chega por trás, sem que eu perceba, e meu corpo salta com o susto repentino. O riso dela ecoa pelo jardim, abafando o silêncio melancólico das lembranças que nunca se completam, como se a luz de sua alegria preenchesse cada espaço vazio em mim.

A casa parece ganhar vida quando ela está por perto. Seu riso, seu andar, até a forma como ela respira tornam tudo mais vibrante. E eu, que sempre preferi o silêncio, me vejo ansiando pelo barulho. O sorriso dela, aquele sorriso sincero e despreocupado, tem uma forma estranha de me fazer esquecer as sombras. Com sua presença, sinto algo mudar em mim, como se o peso que eu carrego no peito se tornasse mais leve. Não sei se ela percebe, mas sua energia tem me curado de maneiras que palavras nunca poderiam explicar.

- O que faz aqui sozinho? - ela se senta na borda da piscina molhando os pés.

- Estou esperando o fisioterapeuta chegar.
E você, o que faz em casa tão cedo?

- Minha aula de música foi cancelada, então adiantei o treino de Kickboxing.

Ela balança os pés na água como uma criança.

- Você deveria entrar, a água está uma delícia.

- Porque você não entra, primeiro?

Inesperadamente ela se levanta e retira sua camiseta evidenciando suas curvas escondidas em baixo daquela camiseta larga.
Ela está vestindo um conjunto preto de top e short de Lycra, short esse bem curto por sinal. Chloé pula sem hesitar na piscina buscando se refrescar após um treino intenso de boxe tailandês.
Espreito meus olhos sob seus movimentos suaves dentro da água.

Cada dia ao seu lado me fazia sentir mais atraído, parecia aprofundar um laço silencioso, como se uma força invisível me puxasse para mais perto, algo que eu não conseguia controlar, e nem queria. Era estranho não me lembrar dela com clareza, como se estivesse sempre ali, presente em algum canto da minha mente, mas apenas agora surgisse com todo seu brilho. Suas expressões eram um misto desarmante de inocência e uma sensualidade discreta, uma combinação que caminhava lado a lado, brincando com meus pensamentos, me deixando à beira da loucura. Ela era um enigma que eu queria desvendar, mas que ao mesmo tempo me deixava com medo do que eu poderia descobrir.

Ela apoia os braços na piscina, e deita a cabeça de lado sobre os braços cruzados. Percebo a a diferença da temperatura através do vapor que emana da água.

- Chloé?

- Sim! - responde de olhos fechados se equilibrando na borda.

- Me fale sobre nós... Como era a nossa relação? O que fazíamos juntos?

Sua reação é de surpresa. Seus olhos buscam as palavras certas tentando evitar meu contato visual.

- Bom... - hesita - por onde eu começo? Somos meio-irmãos, nos provocamos, implicamos um com o outro, eu te irrito, você me irrita, coisas normais eu diria. - ela parece esconder algo a mais.

Seus olhos evitam os meus, buscando amparo ao redor. O ar despreocupado que ela tinha ao chegar desaparece em meio a agitação dentro dela. Posso perceber que a minha pergunta mexeu fundo nela. O que ela esconde?
Eu rio, tentando parecer natural com medo que ela se retraia ainda mais.

- E o que a gente mais gostava de fazer juntos? Como irmãos. - insisto.

Seu olhar muda instantaneamente adquirindo um brilho que não estava ali, como se ela tivesse sido transportada para uma lembrança feliz.
Ela então sorri com o canto do lábio.

- Gostávamos de ficar sob as estrelas contemplando as constelações deitados no telhado.

- Isso me parece legal... E o que mais? - ela desperta minha curiosidade.

Ela pensa um pouco, talvez tenha medo de revelar mais do que possa.

- Você gostava de assar cookies de chocolate sempre com algum adicional, menta, pimenta, cereja... Era sempre saboroso.

Ela então se solta.

- Algumas vezes você me dava carona com sua moto, - ela tem um sorriso saudoso - era estranho porque ao mesmo tempo em que me se sentia amedrontada pela velocidade, também conseguia me sentir livre.

- A moto que eu ganhei numa mesa de poker? - pergunto curioso.

- Sim, essa mesma! Você se lembra?

- Como eu poderia me esquecer... - sorrio ao voltar no tempo - eu quase apanhei dos caras com quem apostei, e também da minha mãe quando ela me viu chegando em casa com a moto.

Chloé sorri, com uma doçura que faz meu coração vacilar.

- Não parece que foi a tanto tempo assim. - respiro fundo - Gostaria de poder me lembrar de mais, de tudo. - completo.

O silêncio paira sobre nós cortando abruptamente a nossa conversa. De repente o sorriso da lugar a uma enfadonha tristeza. É inevitável não se sentir assim. Por mais que eu me esforçasse para recuperar a memória, uma parte vital da minha vida havia sido apagada sem meu consentimento e eu me sentia como como um tronco seco - oco e vazio.


EU, VOCÊ e o que não dizemos!Onde histórias criam vida. Descubra agora