Unus

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Desde pequena que as estrelas me incomodam. Não no sentido óbvio — a luz ou a distância nunca me fascinaram como aos outros.

Para mim, as estrelas eram sempre uma lembrança de algo mais profundo, algo que eu não conseguia ver, mas sentia. Um segredo, uma promessa esquecida, ou um aviso. Passava noites inteiras deitada na cama, com a janela aberta, a olhar para aquele céu estrelado de Veridia, à espera de respostas que nunca vinham.

Mas hoje... hoje era diferente. Havia algo no ar. O vento soprava de forma irregular, como se carregasse um presságio. As árvores inclinavam-se com força, as suas folhas a sussurrar segredos que eu não conseguia entender.

Caminhava pela estrada de terra que levava à livraria dos meus pais, com as mãos enterradas nos bolsos do casaco e o capuz a cobrir o cabelo desalinhado. O ar estava gelado, mas o arrepio que corria pela minha pele não vinha do frio. Era a mesma sensação de sempre, aquela corrente estranha, como eletricidade, a vibrar debaixo da minha pele. Mas agora estava a intensificar-se, tornando-se impossível de ignorar.

Veridia estava quieta como sempre, com as luzes das poucas casas da aldeia a cintilar à distância. As montanhas escuras erguiam-se ao fundo, como gigantes silenciosos que observavam tudo de cima, e o rio que serpenteava pela floresta refletia a luz pálida da lua.

Quando finalmente cheguei à livraria, a campainha antiga soou quando abri a porta, e o calor suave do interior acolheu-me. Lá dentro, as estantes estavam alinhadas com livros antigos, alguns quase em ruínas. Aquele lugar era o meu refúgio desde sempre. Cresci entre estas estantes, a devorar histórias e lendas, muitas das quais falavam de magia, de destinos e de deuses esquecidos.

Mas o que eu não sabia na altura é que parte dessas histórias não eram apenas mitos.

— Cate? — A voz da minha mãe soou do balcão, onde ela organizava alguns livros. A sua expressão suavizou ao ver-me, mas os seus olhos estavam atentos. — Estás bem?

— Estou — respondi rapidamente, sem pensar. Não queria preocupá-la, mas a verdade é que não estava nada bem. O meu coração estava acelerado, como se o próprio sangue estivesse a responder a algo que eu não conseguia ver. — Só precisava de um pouco de ar.

Ela franziu o sobrolho, como se não acreditasse totalmente, mas não insistiu. Era sempre assim. Havia uma tensão entre nós que nunca era verbalizada, um entendimento de que algo estava a ser ocultado. Mas eu nunca soube o quê.

E, honestamente, parte de mim tinha medo de descobrir.

Subi as escadas para o meu quarto e fechei a porta atrás de mim. O vento lá fora continuava a uivar com força, e a sensação na minha pele, aquele formigueiro constante, não desaparecia. Deitei-me na cama, mas o sono parecia uma impossibilidade. Os meus olhos fixaram-se no teto, enquanto o zumbido na minha mente crescia. Era como se algo — ou alguém — estivesse a tentar chegar até mim.

Fechei os olhos, para tentar acalmar-me, mas em vez de paz, vi estrelas. Não as estrelas normais do céu, mas algo mais. Elas estavam a vibrar, a mover-se de uma maneira que eu não entendia. E então, uma imagem clara surgiu: uma constelação que eu nunca tinha visto antes, a brilhar intensamente contra o fundo negro.

Sentei-me de repente, o coração a martelar no peito.

O que é que isto significava?
Porque é que eu estava a ver aquilo?

O barulho lá fora interrompeu os meus pensamentos.

Alguém estava à porta da livraria. Olhei pela janela e vi uma figura alta, de ombros largos, com uma capa escura que se movia com o vento. Ele parecia estar parado, apenas a observar. O meu estômago revirou-se de nervosismo, mas também de curiosidade.

Desci as escadas em silêncio, sem querer alertar os meus pais. Abri a porta devagar, e o vento gelado envolveu-me. A figura virou-se lentamente para mim, e foi aí que os seus olhos me atingiram como uma rajada de vento ainda mais fria. Eram castanhos escuros, profundos, como se contivessem o universo inteiro dentro deles. Havia algo de familiar neles, mas eu não conseguia entender porquê.

— Cate Vesper? — disse ele, a voz baixa e grave, mas cheia de certeza.

O meu corpo ficou imóvel ao ouvir o meu nome. Ninguém me chamava assim, nem sequer eu usava o meu sobrenome. Era apenas Cate.

— Quem és tu? — perguntei, a tentar parecer confiante, mas a minha voz soou mais fraca do que eu queria.

— Alguém que sabe o que estás a sentir — ele respondeu, dando um passo em frente, a sua capa a roçar o chão. — As estrelas chamam por ti, não chamam?

O meu coração saltou no peito. Como é que ele sabia? Ninguém sabia sobre isso. Nem eu entendia.

As estrelas... sempre me tinham incomodado, mas ultimamente, era como se estivessem a exigir algo de mim.

— Quem és tu? — perguntei novamente, desta vez com mais firmeza.

Ele inclinou ligeiramente a cabeça, como se estivesse a ponderar a resposta.

— Sou apenas um mensageiro — disse ele finalmente. — Mas o que importa agora não sou eu, Vesper. O que importa é o que está prestes a acontecer contigo.

O formigueiro na minha pele intensificou-se, transformando-se quase numa dor. O vento à nossa volta parecia girar, como se estivéssemos no centro de uma tempestade invisível.

— Tu... estás prestes a descobrir o teu verdadeiro lugar, Cate. A tua verdadeira herança. As estrelas têm estado a esperar por ti. E agora, elas querem-te de volta.

— Eu... — As palavras falharam-me, porque, na verdade, eu não tinha ideia do que ele estava a falar. Herança? Estrelas? O que é que isso significava?

— Vem comigo — disse ele, estendendo uma mão. — Está na hora de despertares.

Eu olhei para a sua mão estendida, e depois para os seus olhos. Havia uma parte de mim que gritava para correr, que tudo isto era um absurdo enorme, mas havia outra — uma parte mais profunda, uma parte que sempre soube que este momento ia chegar — que queria aceitar.

— Se vieres, vais saber tudo. Vais descobrir o que te tem sido escondido toda a tua vida. Mas se ficares... — A sua voz desceu, quase como um sussurro. — Se ficares, continuarás no escuro.

As palavras dele ecoaram na minha mente. Toda a minha vida, senti que algo estava errado, em como me sentia como algo me era escondido, que havia um segredo enterrado profundamente na minha própria existência. E agora, de repente, havia uma escolha. Ficar no conforto da ignorância... ou mergulhar no desconhecido.

O vento uivava à nossa volta, e o som parecia ecoar o tumulto dentro de mim. Eu estava em pé no limiar de algo. De uma vida que eu não compreendia, mas que, de alguma forma, sempre soube que era minha.

Respirei fundo e, sem pensar duas vezes, estiquei a minha mão para tocar na dele.

O Despertar das SombrasOnde histórias criam vida. Descubra agora