As Chaves da Galeria

15 3 0
                                    

Juliana encarava o espelho, tentando encontrar alguma coragem para enfrentar o que a esperava. Seu reflexo parecia tão desgastado quanto ela se sentia por dentro. O cabelo, constantemente bagunçado, refletia o caos interno que tentava esconder. Fugindo do habitual preto que sempre a envolvia como um escudo, escolheu um moletom branco. Não que fosse sua cor favorita, mas porque sabia que Renata preferia tons claros nela. Talvez uma tentativa inconsciente de agradá-la, como fazia no passado.

Com um suspiro profundo, pegou as chaves e, antes de sair, seus olhos recaíram sobre um quadro pendurado ao lado da porta: um samurai solitário observando o horizonte ao entardecer. Aquela imagem, de alguma forma, sempre a fazia lembrar de sua luta constante para manter as emoções sob controle. Sentindo o peso da ansiedade crescendo, fechou a porta atrás de si e seguiu para o compromisso.

Renata já estava à sua espera em um café aconchegante no centro da cidade. Próxima dos sessenta, ela ainda carregava uma jovialidade quase desconcertante. Com seus olhos azuis brilhantes e roupas sempre impecavelmente escolhidas, ela exalava uma serenidade que Juliana sempre admirara. Para Juliana, Renata era o mais próximo que já tivera de uma figura materna. No entanto, o reencontro, depois de tanto tempo, trazia mais tensão do que conforto.

– Oi, Juliana – disse Renata, levantando-se para cumprimentá-la com um sorriso caloroso.

– Oi, Renata. Desculpa a demora, acabei me atrasando – respondeu Juliana, sentando-se à mesa com movimentos nervosos.

– Sem problemas. Pedi um café para você. Não sabia se ainda gostava...

– Gosto, sim. Obrigada – interrompeu Juliana, quase sem querer. – Desculpa, não queria cortar você. É só que... ainda estou tentando entender por que me ligou depois de tanto tempo.

Renata sorriu de forma suave, pousando a mão no braço de Juliana.

– Tenho pensado muito em você nos últimos meses. Nunca soube qual seria o momento certo para entrar em contato. Aproveitei que vim resolver algumas pendências na cidade para tentar te ver.

– Que pendências? – Juliana perguntou, franzindo o cenho.

– A galeria que ficava na rua de trás da sua casa... Eu precisei vendê-la.

As palavras pairaram no ar como um golpe inesperado.

– O quê? – Juliana arregalou os olhos, sentindo uma mistura de incredulidade, tristeza e algo que não conseguia definir.

– Eu sinto muito – Renata disse, com um olhar compreensivo. – Não sabia que você ainda guardava algo lá. Mas fique tranquila, só entregarei as chaves na próxima semana. Você pode ir até lá e pegar o que quiser.

Juliana tentou falar, mas as palavras não saíram. Aquela galeria... Era o lugar. O espaço que Camila tanto amava, que haviam construído juntas, peça por peça, sonho por sonho. Mesmo anos depois, ela nunca havia conseguido pisar lá novamente. Tudo aquilo trazia uma dor crua e profunda, como se reabrisse uma ferida que nunca cicatrizara.

– Eu... – tentou começar, mas a voz falhou.

Renata, percebendo sua luta interna, simplesmente a puxou para um abraço. Juliana não resistiu. O peso que ela carregava há tanto tempo finalmente encontrou uma brecha, e as lágrimas vieram, quentes e abundantes.

– Eu esperava que ela voltasse – confessou Juliana, entre soluços.

– Eu sei – Renata murmurou, acariciando gentilmente seus cabelos.

O silêncio tomou conta da mesa, interrompido apenas pelos sons do café ao redor. Longos minutos se passaram enquanto Juliana tentava absorver o impacto daquela notícia. Na sua mente, a galeria era um lugar congelado no tempo, ainda exatamente como Camila a deixara na última vez que estiveram juntas. A ideia de outra pessoa ocupando aquele espaço parecia insuportável.

– Juliana? – Renata chamou, quebrando seus devaneios. – Você quer as chaves?

– O quê? Ah, sim... – respondeu, com a mente longe.

Renata colocou as chaves sobre a mesa, o metal frio brilhando sob a luz suave do local.

– Você tem uma semana antes de entregarmos o lugar. Vá até lá. Veja tudo. Sinta tudo. Você precisa disso... e ela também.

Renata a acompanhou até em casa, insistindo em deixá-la na porta. Antes de se despedir, beijou suavemente a testa de Juliana, como fazia no passado..

– Seja corajosa, Juliana. Por você e por ela.

Juliana observou Renata se afastar, as palavras ecoando em sua mente. Agora, ela estava sozinha novamente, segurando aquelas chaves que pareciam pesar mais do que deviam. O destino da galeria – e das memórias que ela tanto evitava – estava em suas mãos.

Blue | ⚢Onde histórias criam vida. Descubra agora