Já passava das duas da manhã quando o ranger da porta da galeria rompeu o silêncio do corredor, ecoando como um sussurro do passado. Juliana empurrou a porta com a mão trêmula, seus dedos encontrando o interruptor como se o gesto fosse instintivo, repetido centenas de vezes antes. O clique trouxe luz ao espaço, mas não dissipou as sombras que pairavam sobre ela.
O cheiro do lugar atingiu-a como um golpe: tintas vencidas, madeira envelhecida e a poeira acumulada de anos de abandono. A galeria, que um dia transbordara vida, agora parecia um relicário de memórias corroídas pelo tempo. As paredes, antes coloridas e vibrantes, estavam marcadas por rachaduras, manchas de infiltração, e trechos descascados que pareciam gritar por cuidado.
"Por que eu não vim aqui antes?" – Juliana pensou, enquanto seus olhos percorriam o espaço. – "Por que deixei que isso acontecesse?"
Os jornais espalhados pelo chão eram como rastros do tempo congelado. Ela caminhava devagar, cada passo ecoando pela sala. Seu olhar deteve-se em uma viga escurecida, que trazia a marca de queimado de quando Camila experimentara técnicas ousadas com um maçarico. Mais à frente, um buraco na parede, resquício da indecisão de Camila sobre onde pendurar um quadro de um cervo.
Juliana parou diante de uma pintura rudimentar na parede, uma obra que haviam feito juntas. Tocou os traços desajeitados e fechou os olhos, permitindo-se reviver aquele momento.
– Você é péssima nisso, sabia? – Camila comentou, analisando os traços improvisados de Juliana com uma mistura de crítica e humor.
– Você me chamou para pintar com você só para criticar meu estilo? – Juliana respondeu, fingindo indignação, mas com um sorriso escapando pelos lábios.
Camila inclinou a cabeça, franzindo a testa como se realmente tentasse entender. – Sério, Ju, como você achou que um pôr do sol na praia ficaria melhor com uma montanha de gelo no horizonte?
Juliana olhou para a pintura e deu de ombros. – Eu queria algo mais surrealista, sabe? Algo que fugisse do óbvio. Todo mundo coloca um barquinho no mar, Camila. Você queria que eu pintasse só mais uma paisagem igual a tantas outras?
Camila estreitou os olhos, claramente tentando conter uma risada. – Essa foi a pior defesa artística que já ouvi.
Apesar do tom sério, o brilho em seus olhos denunciava a diversão. Ela sabia que Juliana tinha uma visão única de arte. As obras que Juliana admirava eram sempre inesperadas, como janelas para mundos que ninguém mais conseguia imaginar. Camila achava aquilo tanto fascinante quanto absurdamente sem sentido.
– Então, vamos continuar ou você quer me demitir e contratar outra assistente? – Juliana provocou, cruzando os braços em falsa arrogância.
Camila sorriu e aproximou-se. – Acho que posso te dar mais uma chance. – Com um gesto brincalhão, pintou o nariz de Juliana com o pincel e deu-lhe um beijo leve. – Mas, se você não melhorar, terei que considerar novas contratações.
Juliana abriu os olhos lentamente, sendo puxada de volta ao presente. O frio vazio do galpão contrastava de forma cruel com o calor das memórias. Cada canto da galeria parecia contar uma história que ela preferia não ouvir, mas agora não podia mais evitar.
Ela deixou os dedos deslizarem pelos móveis, sentindo cada imperfeição como se acariciasse uma parte de Camila que ainda habitava ali. Entre telas vazias e tubos de tinta espalhados, Juliana encontrou quadros escondidos, guardados atrás de pilhas de objetos esquecidos.
Um deles chamou sua atenção. Com cuidado, pegou um banco de madeira e sentou-se diante da tela. A pintura retratava uma mulher solitária, apoiada em um parapeito de madeira. Ao fundo, uma praia deserta ao entardecer, o céu tingido de tons quentes que contrastavam com a imensidão do mar.
Juliana sentiu o coração apertar. A mulher da pintura parecia tranquila, mas havia algo de profundamente melancólico em sua expressão.
"Ela lembrou..." – Juliana pensou, com um nó na garganta.
Camila havia capturado, com pinceladas suaves e precisas, uma visão que pertencia a Juliana – uma fantasia de futuro que ela nunca ousara compartilhar por completo. Sentindo o peso da lembrança, Juliana permaneceu ali, encarando a pintura, como se o tempo tivesse parado novamente. As cores pareciam sussurrar segredos que ela ainda não estava pronta para ouvir.
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Blue | ⚢
RomansaJuliana vive mergulhada em uma solidão que já parece parte de sua própria identidade. Desde a perda devastadora de seu grande amor, ela se isolou, convencida de que a dor é mais segura do que arriscar sentir novamente. As tentativas de suas melhores...