Mesmo na Sombra

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Os meses que se seguiram à morte de Camila foram um borrão para Sofia. Ela acordava todas as manhãs com a sensação de que o mundo estava errado, incompleto. Nada parecia ter cor, como se a ausência de sua melhor amiga tivesse drenado toda a vida ao seu redor. Mas, em meio ao vazio, uma ideia começou a tomar forma: uma exposição. Uma última homenagem para Camila, para o talento brilhante que tantas vezes fora subestimado — até por ela mesma.

Organizar a exposição tornou-se uma obsessão. Sofia vasculhou a galeria de Camila, encontrando quadros escondidos em lugares inesperados: atrás de móveis, empilhados no fundo de armários, inacabados em um canto escuro do estúdio. Cada tela era um pedaço da alma de Camila, uma janela para sua dor e para sua beleza. Algumas obras eram familiares, mas outras... outras Sofia jamais havia visto.

Lembrava-se de conversar com Camila sobre algumas dessas peças. "Essa pintura está incrível, Cami!" Sofia dizia, enquanto Camila apenas dava de ombros. "Não é grande coisa," respondia, com aquele sorriso tímido, quase envergonhado, que escondia tanto. Agora, olhando para aquelas cores vibrantes e formas complexas, Sofia via o que antes não enxergava: Camila estava tentando contar uma história que ninguém conseguiu ouvir a tempo.

Na véspera da exposição, Sofia percorreu o galpão vazio, verificando cada detalhe. As paredes estavam forradas com as obras de Camila, cada uma iluminada com precisão. Era como se Camila estivesse ali, espalhada por aquele espaço. Sofia parou em frente a uma das telas maiores, uma peça abstrata com tons escuros que se misturavam com pinceladas de luz.

"Você era tão boa, Cami," Sofia disse, a voz embargada, enquanto deslizava a mão pelo contorno da moldura. "Eu queria ter dito isso mais vezes."

As palavras soaram vazias no silêncio. Não havia resposta, e isso doía como sempre.

Na noite da exposição, Sofia chegou cedo, mas não foi a primeira a chegar. Algumas pessoas já estavam ali, admirando os quadros com olhares curiosos ou contemplativos. A maioria eram apenas admiradores do trabalho de Camila, pessoas que conheciam a artista, mas não a pessoa. Poucos eram os verdadeiramente próximos, e Sofia sentiu isso como uma ferida aberta.

Juliana, como Sofia já temia, não apareceu. Renata, a mãe de Camila, também não veio. Desde a morte da filha, ela havia desaparecido, como se não suportasse enfrentar o mundo sem a presença da menina que ela perdeu. Sofia tentou não se incomodar. Disse a si mesma que o importante era a memória de Camila, não quem estava ali para vê-la. Mas, no fundo, sentia-se mais uma vez deixada de lado, sozinha no meio de uma multidão.

Ela circulava entre as obras, observando as reações das pessoas. Algumas se emocionavam. Outras apenas passavam os olhos, distraídas, talvez sem entender a profundidade do que viam. Para Sofia, cada quadro tinha uma história, uma lembrança. Lá estava a pintura que Camila fez depois de um dia particularmente difícil, quando se trancou no quarto e não quis falar com ninguém. Ali estava outra que Camila terminou na madrugada, enquanto Sofia dormia no sofá da galeria.

Quando as luzes começaram a apagar e os últimos convidados se despediram, Sofia permaneceu. A solidão voltou a se instalar como uma velha conhecida. Ela sentou-se no chão, de frente para o maior quadro da exposição: "Sombra e Silêncio."

Era uma peça que Sofia nunca entendera totalmente. Camila a pintara em segredo, e, quando Sofia perguntou sobre ela, recebeu apenas um sorriso evasivo. "É só algo que eu precisava colocar pra fora," Camila dissera. Agora, Sofia via aquele emaranhado de formas e cores escuras com outros olhos. Via o desespero, a luta, mas também algo mais: uma centelha de esperança, quase escondida.

"Eu sinto tanto a sua falta, Cami," Sofia sussurrou, com lágrimas escorrendo pelo rosto. "Você era minha pessoa. Minha única certeza nesse mundo. E agora... agora eu não sei como continuar."

O silêncio era sufocante, mas Sofia permaneceu ali, encarando a pintura como se esperasse uma resposta. E então, seus olhos captaram algo que nunca havia reparado antes: uma pequena inscrição no canto inferior da tela, quase imperceptível.

"Mesmo na sombra, ainda sou sua luz."

A frase parecia brilhar para ela, como se Camila estivesse ali, falando diretamente com Sofia. O peito de Sofia apertou, e o choro veio com mais força. Por um momento, tudo que ela queria era abraçar a amiga, dizer que a amava, que sempre estaria lá. Mas Camila se foi. E isso era algo que Sofia precisaria aceitar, por mais impossível que parecesse.

Naquela noite, enquanto trancava o galpão e se dirigia para casa, Sofia sentiu algo diferente. Não era o fim da dor, mas havia um pequeno fio de esperança, um lembrete de que, mesmo na escuridão, a luz de Camila ainda estava presente de alguma forma.

Ela prometeu a si mesma que continuaria honrando sua melhor amiga — não apenas com exposições ou memórias, mas vivendo a vida que Camila não pôde. Sofia sabia que não seria fácil. Mas pela primeira vez, em meses, acreditou que seria possível.

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