Capítulo 14 - Danos

3K 355 148
                                    

Você pode tentar por horas me deixar culpado

Mas vai dar errado

Já que foi o resto da vida inteira que me fez assim.

Capitão Gancho - Clarice Falcão

Desce e sobre. Desce e sobe. Desce e sobe.

Esse era o movimento que mais acalmava Colin, quando as coisas saiam muito do seu eixo desordenado. Era o movimento das suas pedaladas na bicicleta, primeiro a perna descendo, gerando impulso para a outra perna subir, então a brisa batendo em seu rosto, por cortar o ar com sua velocidade cada vez maior.

Também era, ironicamente, o movimento geral da sua vida.

Descidas e subidas, mais descidas do que subidas, ele tinha de admitir. Colin, há alguns anos, parecia só descer um morro íngreme que nunca chegava a sua base. A parte boa de só estar morro abaixo é que você não precisa perder o ar por esforço para subir, pode apenas se aproveitar da gravidade (um dos raros momentos que Colin podia se sentir amigo da gravidade). A parte ruim... bem, é todo o resto.

Começou num dia típico irlandês, treze anos atrás. Colin se lembrava tão bem daquele dia que era até irônico que todo mundo associava ele (e seu diagnóstico) a uma memória ruim. Não que a memória dele fosse mesmo boa, mas, quando se esforçava, ou quando algo ficava muito marcado em sua mente, ele não tinha como apagar. Foi o caso daquele dia.

O garoto sempre havia sido elétrico, agitado, como qualquer menino da sua idade ou da rua em que morava. Tudo bem, ele não conseguia ficar nem dez minutos na frente da televisão sem mudar de canal ou sem desistir do que quer que estivesse vendo, para ir fazer outra coisa. Jogar vídeo-game também não era a melhor das opções: Colin sempre largava as missões no meio, não importasse o quanto ele gostasse do jogo. A não ser quando ele chegava na parte realmente difícil do enredo, aí o garoto conseguia se focar por algum tempo até vencer e, bem, tudo perder a graça.

A vida de Colin podia ser resumida a isso: um esforço que só acontecia quando a tarefa era difícil. Talvez por isso ele fosse bom com números mais do que com qualquer outra coisa em sua vida. Afinal de contas, quanto maior a expressão numérica, mais ele se desafiava para chegar ao final.

Mas isso foi depois do diagnóstico.

Antes do diagnóstico ele era só uma criança de seis anos com muita energia a ser gasta. O que estava tirando o sono de seus pais, já que ele mesmo dormia pouco. E também tirava a paz da sua professora na escola que sua mãe o colocou para se ver livre por um tempo da hiperatividade do garoto.

Hiperatividade, Colin pensou pedalando ainda mais rápido, era estranho o quanto ele gostava daquela palavra antes de entrar naquele maldito consultório.

Foi numa quarta-feira fria de Galway, no dia 25 de março, do ano de 2003. Sua vida poderia ser dividida antes e depois disso: antes ele era um garoto agitado, mas normal, que só precisava gastar um pouco mais de energia para conseguir dormir.

Depois, bem, depois ele era um garoto com um transtorno descrito no catálogo internacional de doenças e, como se não bastasse, no diagnóstico de saúde mental.

O nome bonito para o que tinha era transtorno hipercinético, F90 do CID. Colin leu tanto essa classificação que, mesmo que sofresse mesmo de problemas de memória, teria guardado tudo isso em sua mente. Hipercinético era um nome pomposo para o que o garoto apelidou de: transtorno do inferno.

Colin se lembrava de ter ouvido o diagnóstico da médica, naquele consultório frio, e piscado os olhos várias vezes tentando entender. A palavra era bonita. Mas, pela expressão da mulher, o que ele tinha não era. Pelo menos, não o bastante para que pudesse conviver sem tomar remédios ou fazer terapia ou os dois.

Cores De Um RecomeçoOnde histórias criam vida. Descubra agora