Capítulo 61 - Escuridão

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Rosângela era uma pessoa difícil de conviver, mas eu estava quase implorando que ela me contratasse em tempo integral na loja. Eu não tinha mais nada para fazer e ficar em casa, olhando o teto, não estava me fazendo bem. Já fazia uma semana da bendita cantoria de Alex na televisão e eu ainda não conseguia parar de pensar sobre o assunto. Se eu ganhasse um real cada vez que eu olhasse na direção do meu celular, já estaria rica. Eu não tinha nem mesmo segurado o aparelho - nenhuma vez sequer. Estava incomunicável com o mundo lá fora, mas pelo menos não corria a tentação de olhar minhas fotos ou de ouvir Photograph em looping.

Não estava pronta. Tinha dúvidas se, algum dia, eu estaria. Com Alexander cantando minhas músicas em programas ao vivo, com certeza não. O que ele estava fazendo, pelo amor de Deus? Fui acusada de coisas horríveis e não ouvi um pedido de desculpas. Mas o vi no aeroporto. E o vi cantando minha música na televisão. Eu precisava parar de ter ciência dessas aparições de Alexander. Era mais difícil curar minha mágoa se ficasse dando de encontro com lembranças dele o tempo todo.

A internet também estava impossível depois da apresentação e dos acontecimentos em Londres. Eu tentei usar um dia ou dois, mas qualquer rede social estava inviável com a quantidade de novos seguidores e notificações. Fechei tudo o mais rápido que pude e nunca mais abri novamente. Netflix foi meu único amigo e companheiro. Mariana apareceu na minha casa um dia ou outro, mas eu não quis recebe-la em nenhum. Sei que ela provavelmente ia querer falar sobre Alex e esse era um assunto que eu não queria tocar. Ela deixou torta, DVD, pacotes de pipoca... Um presente de cada vez, a cada visita frustrada que tentava fazer. Eu também precisava de um tempo dela. Talvez eu viesse a perdoá-la, se realmente fosse a melhor pessoa do mundo¸ como ela sempre dizia. Mas até a melhor pessoa do mundo precisa de seus momentos de reflexão sozinha.

Eu só usava o computador quando precisava ver alguma informação sobre a faculdade. Aliás, se pelo menos ela já tivesse começado! Eu não estava nem um pouco empolgada, mas pelo menos era alguma coisa para ocupar meu tempo e a minha cabeça. Já estávamos quase no meio de fevereiro, mas ainda não tinha previsão para retorno das aulas. Novamente as universidades federais estavam em greve e boatos diziam que talvez fossemos perder todo semestre. Eu cursaria administração quando isso acontecesse. Já tinha sido aprovada pelo SISU e estava tudo certo. Meus pais estavam felizes por eu ter escolhido uma carreira "aberta", que me dá "infinitas possibilidades".

Meu resultado nos SATs saiu um pouco depois de minha inscrição no SISU. Eu novamente não fazia ideia se ele era bom ou ruim, por não saber o parâmetro. O próprio site me dava opções de enviar o resultado para algumas faculdades nos Estados Unidos e, ainda na surdina, eu enviei. Simplesmente para não ter peso na consciência. Depois fiquei olhando nos sites a quantidade ridícula de "documentos adicionais para aplicação" que eu ainda precisava mandar e os prazos apertados. Gastei uma fortuna de correio, mas pelo menos eu ainda tinha um pouco do dinheiro do Show de Talentos guardado.

A verdade é que eu estava voltando cada vez mais a minha rotina e tentando distanciar meus pensamentos de qualquer acontecimento fora do raio de território brasileiro. Só que minha rotina ainda estava muito fragmentada e desestruturada. As mentiras que eu contava para minha mãe (afinal, até agora ela não sabia que eu trabalhava na Prato & Tambor) também faziam tudo ficar mais difícil. Com uma rotina incompleta e mentirosa, eu me encontrava muito mais vezes do que gostaria largada na minha cama, jogando minha almofada favorita para cima e fazendo o impossível para não deixar minhas memórias me transportarem de volta para Inglaterra.

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