Capítulo 01 - Inflamável

67.2K 3.8K 2.6K
                                    

— Kate! Você não sabe o que eu li sobre o Alex ontem! – Mariana gritou quando me viu saindo pela porta de casa.

— Não e eu também não quero saber! – gritei de volta, tampando meus ouvidos. — Não aguento mais ouvir sobre esse garoto!

— Ele não é um garoto, ele é o amor da minha vida – ela respondeu, se aproximando, disposta a me contar, independente de minha vontade.

Eu comecei a correr na direção do carro de tia Cláudia, sua mãe, e nós duas nos engalfinhamos pelo caminho. Ela querendo me contar as novidades (ouvi coisas como "lindo", "filme novo", "surfista" e "sem camisa"), enquanto eu gritava LALALALALALA incessantemente, tentando sobrepor sua voz.

— Vocês duas, vocês duas... – a mãe dela disse quando nós entramos no carro. – Parece que vocês ainda têm treze anos!

Eu ignorei tia Cláudia, dando língua para Mariana, que assistia pelo retrovisor central, revirando os olhos. Ela acendeu a tela do celular e os olhos azuis do ator jovem mais amado do mundo brilharam na tela e foi minha vez de revirar os olhos. Por sorte, Mariana não viu esse meu ato de "desrespeito por este pedaço de mau caminho" (palavras dela) ou eu teria que ouvir um sermão sobre isso até o colégio. Além da fofoca que ela aparentemente descobriu ontem.

— E então, já decidiu o que fazer no vestibular? – a mãe de Mariana perguntou, com um sorriso que visivelmente tentava passar segurança.

Eu sorri de volta, torcendo para que o meu próprio sorriso não passasse o que eu sentia de verdade: pânico. De repente ouvir um sermão sobre como eu deveria amar e respeitar Alex Rodder não parecia mais uma opção tão ruim.

— Ainda não – Mari respondeu por mim. – Na verdade, ela não faz nem ideia.

Quantas vezes eu tinha ouvido essa pergunta nos últimos meses, desde que comecei o último ano no colégio? Como é mesmo aquele ditado? "Se eu ganhasse 1 centavo para cada vez que eu ouvisse essa pergunta, já seria milionária". Bilionária talvez. Apostaria no tri até a data do ENEM.

A pior parte é que isso não me apavorava. Não saber o que eu queria fazer pelo resto da minha vida não me deixava nervosa. O que me deixava nervosa era que os outros – inclusive meus pais – esperavam que eu soubesse o quanto antes. E, considerando a proximidade do exame, talvez eu devesse entender o porquê de todos esperarem isso.

Tia Cláudia, mãe de Mari, continuava falando. Dentre os adultos que eu convivo, ela era a mais sensata quando se tratava desse assunto. Talvez porque sua filha estivesse certa de que ia fazer faculdade de Artes Cênicas e seu outro filho estivesse já no último semestre da faculdade de Educação Física. Talvez fosse por isso que ela fosse tão compreensiva. Para minha mãe, pior do que ter uma filha que não sabe o que quer fazer, seria ter uma filha que quer fazer uma carreira "peculiar" dessas. Agronomia. Ciências Sociais. Relações Internacionais. Letras. Geologia.

Meu ouvido começou a zumbir, como se estivesse sentindo a pressão. Mesmo assim, sorri para Tia Cláudia, concordando com a cabeça com tudo que ela dizia, quando na verdade não estava nem ouvindo nada. Eram sete e cinco quando o monólogo finalmente acabou e Tia Cláudia nos deixou na porta do colégio. Eu corri, com Mari logo atrás. Ela sabia tão bem quanto eu que meu histórico não tinha lugar para atrasos. Não mais.

A verdade sobre eu não ter escolhido uma carreira pode relacionar-se também com o fato de eu ser péssima aluna. Não no sentido de notas baixas (ainda que minhas notas não possam ser consideradas realmente excelentes), mas sim no sentindo de péssima disciplina. Já estávamos em setembro, o que significava que a bendita prova definidora de futuro se realizaria muito em breve e tudo que eu conseguia acumular no meu histórico eram advertências e suspensões. Não que eu tenha sido sempre assim. Ah, não. Uma coisa aconteceu. Uma pessoa aconteceu. Excluí esse pensamento enquanto dava um sorriso sem graça para o inspetor na porta e estendia minha caderneta. Percebi que ele me olhou, olhou para Mari, olhou nossos históricos e, por fim, manteve o carimbo que eu precisava: PRESENTE. Não o que preenche a maior parte das minhas folhas desde o incidente: ATRASADA.

Tiete!Onde histórias criam vida. Descubra agora