38. Presença

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::ANA::

A dor no peito foi a primeira coisa que senti. Parecia que meus pulmões pesavam como se fossem feitos de aço e o ar raspasse a traqueia como pequenos espinhos, ainda assim, eu agradecia a dádiva de ter ar circulando dentro de mim e depois de todo aquele desespero poder descobrir-me viva. Minha mãe foi a primeira a aparecer no meu campo de visão, parecia mais cansada e abatida que o habitual e me dei conta de quão pouco eu a via normalmente.

— Aiko! — Ela segurou minha mão e acariciou meu rosto. — Como se sente?

— Estou bem, mãe... só dói um pouco respirar. — Tentei acalmá-la.

— Que enorme susto você nos deu! Estávamos tão preocupados. — Sua voz chorosa fez eu me sentir mal.

— Sinto muito tê-los preocupado.

— Humhum. — Papai agitou a cabeça negativamente. — O importante é que está bem. Precisará ficar mais uns dias aqui no hospital para ver a regressão do problema.

— Providenciaremos sua transferência para outra escola também.

— Mas... — protestei.

— Essa situação já foi longe demais. — Cortou meu pai. — Chegaram a pensar que estávamos agredindo você em casa!

— O quê?! — Surpreendi-me e senti uma forte dor no peito.

— Não faça esforços desnecessários, Aiko. — Pediu minha mãe acomodando-me novamente nos travesseiros. — Já esclarecemos tudo. Preocupe-se só em se recuperar agora.

Eles ficaram comigo até o fim do período de visita e depois disso fiquei aos cuidados das enfermeiras e médicos. A cama ao lado do meu quarto estava vazia, peguei então um dos livros que minha mãe havia trazido para mim e passei o tempo até a hora de dormir.

*

Quando voltei para o quarto depois de outra sessão de exames para acompanhar a regressão do pneumotórax tive uma inusitada surpresa ao ver Hazume Yoshida me esperando. Ela era a representante da nossa sala na escola e uma das responsáveis indiretas por eu estar ali. A enfermeira me acomodou e depois de fazer uma reverência para cumprimentar minha colega de classe, saiu do quarto deixando-nos a sós.

— Hazume-san, algum problema? — Perguntei impassível.

— Soube que estava aqui e quis visita-la. — Respondeu ela, acanhada. — Além do mais, trouxe o conteúdo que você perdeu, pensei que poderia querer estudar.

— Agradeço a disposição. Vai servir para me distrair, mas não será muito necessário uma vez que vou mudar de escola.

— Ah... entendo. — Ela pareceu mais envergonhada. — Sinto muito por tudo isso, Nakajima-san... eu...

— Tudo bem. Não é como se alguém pudesse realmente fazer alguma coisa.

— Por favor, me deixe saber se houver algo que possa fazer por você. — Ofereceu ela.

— Agradeço muito, Hazume-san.

Não posso dizer que ela saiu dali como minha amiga, mas sabia que provavelmente ia pensar melhor no que fazer quando outra pessoa sofresse bullying na escola. Pelo menos era o que eu esperava.

Permaneci no hospital por mais três semanas, nesse meio tempo tentei estudar o máximo que conseguir e, para minha sorte, a escola para qual seria transferida não estava muito longe da antiga escola, desse modo eu tinha alguns capítulos de vantagem, mesmo sentindo-me muito cansada o tempo todo por respirar com dificuldade, dei o melhor que pude em acompanhar as matérias e revisar as anteriores para manter o mesmo nível acadêmico. Ainda que meus pais recomendassem bastante que eu não me esforçasse além da conta, não conseguia agir de modo diferente.

Quando voltei para casa, era quase como se tivesse passado anos fora, minha mãe pediu alguns dias de licença para ficar comigo em casa, mesmo eu tendo dito que não era necessário, era impossível conter a chama de felicidade que crescia silenciosa dentro de mim por poder tê-la por perto. Geralmente eu só via meus pais à noite e mesmo que compreendesse a importância que o trabalho tinha para eles e para manutenção da nossa casa, não podia deixar de me sentir solitária. Eu não tinha irmãos com quem dividir o tempo, não tinha amigos com quem sair, minha vida se resumia em estudar e dar orgulho acadêmico para aqueles que trabalhavam noite e dia para garantir que eu ia para faculdade. Então, por mais que fossem apenas alguns dias, eu me permiti ser egoísta e desfrutar da companhia dela.

— O que está fazendo? — Questionou-me quando me trouxe um lanche no quarto.

— Apenas resolvendo uns exercícios do livro da nova escola...

— Não se esforce demais, Aiko, precisa descansar para se recuperar totalmente.

— Eu estou mesmo bem, mãe. Não se preocupe tanto, sim?

— Está bem, mas não vá dormir tarde!

Ela beijou minha cabeça e saiu. Ainda fiquei ali resolvendo equações e problemas matemáticos por mais algum tempo que não cronometrei até uma estranha brisa gélida entrar no quarto, fitei a janela aberta por um tempo demasiado longo tentando me lembrar de que momento eu a havia aberto. Olhei em volta do quarto me dando a certeza de que estava sozinha, era um absurdo, ainda assim, não conseguia afastar de mim aquela sensação de que estava sendo observada. Pus o livro de lado e levantei dando passos cautelosos até a janela, a rua estava como sempre vazia e precariamente iluminada e eu gostava disso, podia apreciar as estrelas em sua totalidade, o céu escuro e pontilhado de prata. Enquanto o fitava eu desejava dentro de mim — sem muita esperança — que a nova escola fosse diferente, que fosse melhor. Mas a verdade era que não importava onde eu fosse, aquele ditado me seguiria como uma sombra em todos os lugares.

Foi apenas por um segundo. Uma das luzes oscilou do outro lado da rua e direcionei meu olhar até lá, ela continuou piscando incansavelmente até que, entre as oscilações, eu pude discernir ainda que não nitidamente a silhueta de um homem. Não podia dar certeza de quem era ou se era real, mas as longas asas ocupando grande parte da extensão da rua me dizia que era um Tennin. E num piscar de olhos, ele desapareceu.

*

— Um tennin? — Minha mãe riu. — Onde já se viu algo assim? Aiko, é apenas uma lenda. Os deuses não criariam algo assim para perambular pela terra.

— Mas...

— Escute, você bateu a cabeça na queda, pode ter sido apenas um efeito colateral do cansaço, hum? Se continuar vendo essas coisas me avise que vamos procurar um médico para ver se há algo errado com a sua cabeça.

Voltei para o meu quarto, contrariada. Parte de mim sabia que minha mãe tinha razão em não acreditar em mim, no lugar dela talvez eu também não acreditasse. Entretanto, no meio do silencioso desespero no meu coração, eu queria acreditar que aquela criatura era real. Sentei na beirada da cama e fechei os olhos, tentei evocar a lembrança incerta da noite anterior, me fiz acreditar que podia ser real, que eu podia alcança-lo mesmo que parecesse impossível. Uma brisa suave adentrou o quarto arrepiando minha pele, abri os olhos para encarar a janela fechada diante de mim e sorri.

Eu não estava mais sozinha.


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