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D A N I E L

Meu negócio não era coisa pequena. Eu queria o mundo ou nada.

Charles Bukowski

Eu sou um estúpido de merda. Não deveria ter agido daquela maneira com Alissa. E o pior é que agora não posso ir atrás dela e tentar explicar o que está havendo. Nem eu mesmo entendo.

Bianca tem me evitado desde a última vez em que nos falamos, quando tentei trazer à tona a minha vontade de terminar. Eu sei o que ela está fazendo, mas não sei como chegar até ela e dizer o que estou sentindo sem que a magoe. Mesmo que esteja me magoando a forma como estamos lidando um com o outro.

Fecho o livro que estou lendo e me levanto da mesa, pronto para ir embora. O último período está prestes a acabar e eu resolvo voltar para casa a pé. Talvez caminhando eu consiga organizar meus pensamentos e arrumar uma solução para ao menos uma pequena parte dos meus problemas.

Quando passo por Bianca, ela chama meu nome. Eu quase vou até ela, mas realmente detesto Kevin e ele faz parte do grupo de amigos da minha namorada. Tem um cara que eu não conheço junto com eles, e eu sei que não devia, mas me sinto bastante aliviado quando noto a proximidade entre ele e Bianca. Talvez ela não vá ter muito tempo para lamentar nosso término com ele ao seu lado. Então por que está evitando tanto nossa conversa?

Após sair da biblioteca, dou uma passada na enfermaria. Karen, a enfermeira, está sentada na sua cadeira giratória rosa shock de frente para um laptop. Ela levanta o rosto para mim.

- Quer que eu passe na sua casa hoje? - pergunta.

Pelo fato do meu pai trabalhar na escola, eu sempre andei por aqui desde pequeno, e devido a isso acabei criando uma intimidade maior com a maioria dos funcionários, principalmente com Karen, que de vez em quando vai até minha casa dar uma arrumada nas coisas. Ela não trabalha para nós, nem fui eu ou meu pai quem pediu que ela começasse com isso. Um dia ela simplesmente apareceu por lá após eu ter faltado às aulas durante toda a semana que se seguiu a morte da minha mãe e passou um tempo comigo, o que na verdade significa que ela preparou comida e me incentivou a sair da cama.

Desde então ela vai lá de vez em quando, com algum prato delicioso e pronta para retirar a poeira dos móveis. Nunca pediu nada por isso e foi firme ao insistir em continuar fazendo isso mesmo quando meu pai inicialmente se opôs.

- Na verdade eu queria saber se você tem algo para dor de cabeça, mas se você quiser passar por lá... - Disfarço, como quem não quer nada.

Ela sabe que não estou sendo sincero. Desde que minha mãe morreu eu nunca mais toquei em nenhum tipo de remédio, mas Karen lida com isso de uma forma diferente.

- Eu sei a receita de uma torta de limão que tem poderes milagrosos.

Dou um meio sorriso para ela:

- Por favor.

Eu deixo meus ombros caírem e dou uma última olhada dentro do seu pequeno consultório antes de decidir ir finalmente embora.

- Não vai esperar seu pai? - Ela pergunta, mesmo sabendo que a resposta é não.

- Não deixe ele saber que estou indo a pé. - digo, então saio fechando a porta atrás de mim.

Alcanço o portão da escola bem a tempo de o sinal tocar, então não terei que esperar com o vigia até poder sair. Eu poderia ter pedido uma dispensa a Karen, sei que ela cederia com o mínimo de insistência, mas não me importaria em ficar aqui fora esperando o tempo passar. Apesar de estar indo para casa, a última coisa que eu quero é chegar logo lá, de fato.

Como cheguei ao portão antes de todo mundo, quando saio do colégio não sou cercado pelo vasto fluxo de alunos e não tenho pressa em caminhar pela calçada, seguindo pelo caminho que eu julgo ser o mais distante para voltar para casa. Caminho muito e há bastante tempo para saber as rotas mais longas que posso seguir e os atalhos que devo evitar.

Enquanto caminho, não consigo afastar a sensação de culpa, o sentimento de pesar e irritabilidade misturados e devorando aos poucos a minha consciência. Tudo o que posso fazer é torcer para não ter um ataque de ansiedade bem no meio da rua, mesmo sabendo que isso é pouco provável de acontecer aqui fora.

Estar ao ar livre me tranquiliza quase tanto quanto música, mas ainda não consigo mandar embora a impressão de que a larga rua pela qual caminho é um espaço minúsculo para mim. Penso que o mundo é muito pequeno para o que há dentro de mim. São tantos pensamentos e sensações, ideias e sonhos, que eu não sinto segurança em transmiti-los, então os comprimo até não poder mais. Por mais que eles lutem a todo instante para escapar, eu não sei o que faria com eles, porque o resultado iminente disso seria uma explosão. Uma explosão intensa e profunda que não faria bem a ninguém.

Às vezes acho que se eu chegasse para alguém e falasse metade das coisas que eu sinto, provavelmente a pessoa é quem ficaria pirada. Diria: "escuta, garoto, você é tão perturbado que me perturbou". Então afundo em mim mesmo e deixo tudo pra lá.

A tarde está em seu auge e ao passar pelo supermercado que fica na metade do caminho para minha casa, penso em subir a pequena colina por sobre onde ele foi construído e ficar sentado no fim do estacionamento, esperando anoitecer ou algo assim, mas então olho para cima e vejo que há pessoas lá, o que não seria nada demais, se duas dessas pessoas não fosse uma criança e sua mãe. O menino anda de bicicleta pela rua do estacionamento e a mãe acena para ele. Eu sinto meu peito apertar e dou meia volta, cerrando os dentes.

Eu sempre gostei de ser criança, e agora, mais do que nunca, queria poder voltar àquela época e ter a chance de aproveitar melhor cada momento. Claro que isso é impossível, então eu me contento em andar, observar a felicidade de outras pessoas e imaginar que um dia eu fui igual, mesmo sem ter a certeza de se no futuro voltarei a ser.

Gosto de pensar que existem coisas no mundo que ainda me interessam, que ainda existe terra por onde não caminhei. Tento lembrar que ainda posso aprender coisas novas de todos os lugares, e aproveito meus raros minutos de calmaria para sentir a paz ao observar o sol, a lua e as estrelas, a terra, a água, sentir o ar.

Queria sentir todas as emoções possíveis com o máximo de intensidade, sem temer que nenhuma delas me contamine. Queria sentir o frio e o calor, a chuva, a maresia, a grama e a terra molhada. Queria amar sem medo do que isso fará comigo e ser amado da maneira mais intensa e verdadeira, de modo que nada nem ninguém pudesse se interpôr sobre este sentimento. Queria viajar pelo mundo e conhecer culturas, descobrir quantos idiomas existem, saber ao menos uma palavra de cada um deles. Combinar todas as cores, rabiscar, pichar, desenhar, pintar, ler, escrever, compor, ouvir, cantar, interpretar. Mas o mundo em que vivo é totalmente diferente disso.

O que eu queria mesmo era cada pedaço desse mundo que na teoria deveria ser meu, mas, na prática, é apenas um espaço espremido entre as quatro paredes do meu quarto, o lugar em que eu insisto em me prender por medo do que o exterior pode causar ao que ainda resta de mim.

Geralmente as pessoas se acham insuficientes para o mundo, mas o que chamamos quando alguém acha o mundo insuficiente para si?

SubmersosOnde histórias criam vida. Descubra agora