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A L I S S A 

Me deixe entrar onde só seus pensamentos já estiveram. Permita-me ocupar sua mente como você ocupa a minha.
(Heart's A Mess  Gotye)


Algumas pessoas costumam me perguntar porque a minha mãe, sendo uma psicóloga, tem uma maneira tão superprotetora de me criar. Geralmente eu respondo que ela é especializada em psicologia criminal, e está mais ligada a docência, então durante algum tempo ela lidou com criminosos de vários tipos - o que é, de certa forma, suficientemente traumatizante  -, e em outro período, com grupos de jovens adultos diferentes das crianças e adolescentes que ela cria dentro de casa. Depois eu acrescento que ela veio a se interessar por psicologia da infância e adolescência depois da chegada de Nathan e, ainda assim, ela apenas estuda o desenvolvimento infantil a partir das experiências das crianças vítimas de algum crime ou criadas em ambientes ameaçadores como o de onde Nathan veio.

A verdade é que seria absurdo demais eu tentar explicar para as pessoas que a minha mãe tentou, sim, ser uma mãe liberal. Mas quando se tem dois filhos vindos de lares problemáticos, com pais biológicos repletos de química ilegal e entorpecente em suas veias e históricos de agressão e maus tratos, fica realmente difícil. Minha mãe, acima de tudo, é uma mãe. E para essa função ela já criou a sua própria psicologia.

Quando ela entrou na faculdade, Lucas, Gabriel, eu e Nathan tínhamos entre 3 e 10 anos, e ela prometeu que jamais usaria métodos diferentes dos que ela já usava conosco para nos educar. Porém, com o tempo, Nathan foi se mostrando o mais difícil de lidar de nós quatro, e mamãe não resistiu a experimentar um tipo de criação diferente com ele. Baseando-se em mais diálogos e menos regras, mas alguma coisa deve ter dado errado ou certo demais, pois quando meu irmão mais velho entrou na adolescência ele havia aprendido a escutar mais do que falar, e obedecer mais do que mandar.

Nate detestava brigas e acabava cedendo ao que as outras crianças queriam que ele fizesse para evitar qualquer discussão. Ele foi ensinado a controlar suas explosões de raiva e a não machucar outras pessoas nem quebrar nenhum objeto, mas, ao invés disso, Nathan começou a se machucar de propósito sempre que se frustrava com alguma coisa e, quando o ensinaram que machucar a si mesmo também não era a melhor forma de resolver situações, Nate começou a simplesmente concordar com tudo o que o impunham como uma forma de não se agitar ou fazer qualquer coisa que pudesse decepcionar as outras pessoas.

Foram diversas as vezes em que Nath voltou para casa com marcas de mordidas e arranhões que ele nunca teve coragem de revidar. Se a professora dizia que um abraço e um pedido de desculpas resolvia, ele concordava e o ciclo de agressões se repetia.

Minha mãe tentava fazer Nathan falar, mas nem os vários psicólogos e terapeutas infantis resolveram. Ele preferia mentir a ter que denunciar o que sentia e o que passava, com medo de que a situação apenas piorasse ou meus pais ficassem decepcionados com ele. Como eu sabia disso tudo? Nathan me contava.

Eu tinha pesadelos bobos de criança e ia dormir na cama junto com ele. Eu me sentia mais segura com meu irmão mais velho do que com meus pais, porque enquanto os adultos dormiam, Nate passava a maior parte da madrugada acordado, com medo demais dos próprios monstros para conseguir pregar os olhos. E quando eu perguntava como seus monstros podiam ser tão piores que os meus, ele me contava.

Ele me falou das queimaduras de cigarro feitas em sua pele, dos gritos e do cheiro forte de álcool e vômito. Ele me disse sobre a forma como as crianças mais velhas gritavam e davam ordens, fazendo-o se lembrar do seu padrasto, e de como ele aprendera que a melhor forma era sempre apenas obedecer ao invés de contestar.

– Não é que eu goste de apanhar, como elas pensam que é – ele me disse, certa vez. – É que se eu não revidar, a surra dura menos tempo.

Da única vez em que mencionei aos meus pais sobre o que Nathan me contava, eles resolveram fazê-lo estudar em casa e frequentar aulas de jiu-jitsu. Nate progrediu bastante e voltou a ter o brilho no olhar de quando éramos pequenos e resolvíamos tudo com um longo abraço, mas ele nunca mais me contou nada.

Depois de voltar para a escola após quase um ano estudando em casa, as coisas pareciam ter melhorado para Nate, ao menos visualmente, mas eu sabia que não.

Ele não voltava mais para casa marcado, mas eu via em sua postura que ainda havia algo errado. Ele se fechou ainda mais em sua concha e, apesar de ter feito amigos e começado a sair mais, o seu desempenho escolar caiu e quando estava em casa passava o tempo todo no quarto, falando com os amigos pelo Skype ou ouvindo música alta.

Quando Nathan decidiu parar de ir ao psicólogo, mesmo tendo estacado e quase regredido em seu progresso, meus pais logo descobriram que seu filho mais velho estava mais partido do que parecia e, por causa disso, algo dentro deles se quebrou também.

Daniel me lembra um pouco Nathan. Os dois passaram por muita coisa e fecharam essas experiências dentro de si por tanto tempo que agora não sabem mais como colocá-las para fora, então se enclausuram dentro de suas próprias cascas e acham que se não deixarem ninguém entrar, conseguirão passar por tudo sozinhos. Mas não é bem assim. Algo me diz que quanto mais solitário é alguém, menos sozinho essa pessoa quer se sentir.

Eu errei com meu irmão, eu tentei abrir as portas para ele e sem querer acabei fechando todas as suas saídas. Agora ele está cada dia mais distante de mim e da nossa família e nada disso poderia estar acontecendo se eu tivesse sabido lidar melhor com o que ele me mostrava a respeito de si mesmo.

Não vou errar com Daniel. Não vou deixá-lo trancar as suas portas quando sei que o que ele mais quer é um caminho para se abrir. Eu vou escutá-lo, vou respondê-lo, e vou mostrá-lo que ele não está tão perdido quanto pensa. É uma promessa.

SubmersosOnde histórias criam vida. Descubra agora