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A L I S S A

Hoje eu falei pra mim, jurei até, que essa não seria pra você e agora é.

Clarice Falcão


Meu pai sai mais cedo para o trabalho hoje e eu tenho que ir com minha mãe para a escola. Nem tento pedir para ir sozinha, isso já está aborrecendo até mesmo a mim. Quero saber se vai ser para sempre assim, se nunca vou ser capaz, aos olhos dela, de pegar um ônibus por minha própria conta. Mas esqueço a raiva assim que saímos no carro e eu vejo Thomas caminhando sozinho na calçada em direção a parada de ônibus.

Nada de Daniel. Onde ele pode estar?

Eu tento me sentir culpada por pensar nele desse jeito, mas é inevitável: todas as vezes em que eu vejo Daniel, as tão faladas borboletas no estômago surgem dentro de mim, e elas são ferozes e descontroladas, agitando-se e me rasgando aos poucos enquanto procuram uma forma de sair e voar para o fruto de sua adoração ou no mínimo trazê-lo para perto de mim.

Eu não consigo simplesmente não olhar para ele todas as vezes em que ele surge. Preciso segurar o ímpeto de me levantar da minha mesa e passar a mão em seu cabelo para arrumá-lo toda vez que suas mechas escuras caem sobre seus olhos. Não consigo desviar o olhar todas as vezes em que, da parte de trás da sala, eu tenho uma visão dele de costas, sentado em sua cadeira, inclinando-se para trás preguiçosamente e virando o rosto para o lado para olhar o relógio acima da porta, com poucos centímetros de pele a mostra – seu cabelo vai até um pouco abaixo da nuca, uma parte do seu corpo que curiosamente me atrai.

Chega. Já deu, Alissa. Olhe a seu redor e não para dentro de si e para esse tal menino que nem liga se você existe.

Eu preciso enumerar uma lista de coisas realmente úteis a se observar em vez de perder meu tempo pensando nesse garoto e sofrendo por saber que ele com certeza não dá a mínima para a minha existência e mesmo assim eu continuo me sentindo irremediavelmente atraída por ele. Deve ser mal de signo, como disse Anna com suas manias de astrologia que de repente parecem fazer sentido, tem que ser. Mas se bem que se esse for mesmo o caso, então posso passar o resto do dia com a certeza ilusória de que o meu signo é compatível com o de Daniel, e ao menos no universo astrológico nós podemos dar certo.


≈ ≈ ≈


Daniel faltou aula de novo. Depois do chá de sumiço que ele tomou logo nos primeiros períodos da quarta-feira, e de não ter aparecido na quinta, hoje eu não o vejo em lugar algum. Thomas não fala sobre isso. Quando eu pedi a Anna que, discretamente, o perguntasse se estava tudo bem, ele se limitou a responder que estava tudo como sempre. O que isso pode significar?

Eu sei que não deveria, sei que sou patética por me preocupar tanto, mas, durante a aula de música, no último período da sexta, resolvo falar com o pai de Daniel. Ele se chama Leo e dá para ver a quem seu filho puxou. Os dois tem o mesmo cabelo escuro e olhos castanhos, mas enquanto o olhar de Daniel é profundo e envolvente, o de seu pai transmite uma calma tranquilizante, apesar de ambos carregarem traços de cansaço.

Quando eu estendo a mão e chamo a atenção de Leo, ele sorri, e eu constato que o sorriso também é idêntico ao de Daniel, então não consigo evitar de sorrir também.

– Por que nunca usamos o piano? – Pergunto, quando ele se aproxima de onde estou.

Claro que sei o motivo para não usarmos o piano, mas pergunto mesmo assim, porque dependo da resposta que ele vai me dar para descobrir o que eu realmente quero. O sorriso de Leo vacila um pouco com a minha pergunta.

– Porque, infelizmente, a única pessoa desta turma que sabe tocá-lo com perfeição não veio assistir a minha aula, e os outros alunos não se sentem confiantes para tocarem sozinhos.

Bom, quase lá.

– Está falando de Daniel?

– Sim.

– Ele não apareceu para nenhuma aula hoje, na verdade. Nem ontem.

O professor Leo franze as sobrancelhas, parecendo ter sido pego de surpresa.

– Não veio hoje nem ontem – ele repete, mas não chega a ser uma afirmação. É mais como se estivesse especulando sobre o que pode ter acontecido.

Não é possível que ele não saiba. Ele é o pai, caramba.

Ele abre a boca e a fecha novamente, como se fosse dizer algo, mas tivesse mudado de ideia. Então dá um pesado suspiro e tenta sorrir.

– Bem, vamos esperar que ele venha semana que vem.


≈ ≈ ≈


– Vocês vão pra casa agora? – Milena pergunta o óbvio, pois estamos saindo da escola. – Vamos pra minha casa.

Olho para Anna, que se limita a dizer:

– Tanto faz.

Eu não posso sequer considerar a possibilidade de ir. Minha mãe jamais deixaria, mesmo que eu implorasse. Mas, como eu sei que minhas amigas não vão me achar muito descolada se eu disser que não irei porque minha mãe não deixa, tenho que pensar em algo rápido para dizer:

– Eu preciso estudar física.

Não é totalmente mentira. Eu só estou na turma A porque sou uma aluna dedicada e que costuma estar em dia com as atividades escolares, mas quando se trata de física eu sempre fico na corda bamba.

Não que eu fosse me importar sair da segunda série A para a B, porque não há muita diferença entre as duas. A escola parte do princípio de que ninguém é melhor do que ninguém, então apesar de realmente existirem alunos mais inteligentes que outros, somos separados de acordo com nossa vontade de estudar e do número de vagas em cada sala. Basicamente, na turma A a maioria dos alunos desenvolve projetos próprios e demonstram um interesse maior pelos conteúdos acadêmicos. Anna, por exemplo, participa da equipe de vôlei, está no programa de teatro e dança e é líder do conselho dos alunos.

Bianca também está no vôlei, na verdade ela é capitã do time, e também participa de uma turma avançada de química, mas, ainda assim, ficou na turma B porque as 25 vagas para a primeira turma haviam sido preenchidas. O que significa que ela não tem muito tempo para ficar em cima de Daniel dentro de sala e eu não deveria estar pensando nisso, mas lá ri lá lá, tenho que ir pra casa.

– Te ligo mais tarde, Ali. – Anna se despede.

Uma a uma, elas me dão um pequeno abraço e viram para o lado oposto ao meu, onde, do outro lado da rua, o chofer de Milena a espera. É, chofer. Ainda prefiro a ideia do ônibus, mas minha mãe já está chegando em seu carrinho que mais parece uma lata velha perto do da família de Milena.

Olho para os lados mais uma vez, esperando que, por milagre, Daniel apareça saindo de algum lugar bem escondido, como os que ele costuma escolher para ficar dentro da escola, mas isso não acontece. E eu não consigo me livrar da sensação de que algo está errado.

SubmersosOnde histórias criam vida. Descubra agora