Embora.

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Vitória:

Tu! Já tô aqui embaixo viu?

Após receber a mensagem, calço os sapatos rapidamente e passo em frente ao espelho. Eu vestia um vestido branco na altura do joelho, tive que colocar o casaco preto por cima dele por marcar tanto a barriga. Ajeito o cabelo e após pegar minha bolsa, saio de casa. Entro no elevador que por sorte já estava no meu andar, e em poucos segundos já saio dele. Após passar pela portaria, e sair do prédio, ouço a buzina de um carro preto, a janela rapidamente abre, revelando uma Vitória de lábios pintados de vermelho, que acenava animada para mim. Ando envergonhada até o veículo e entro nele da mesma forma.

-Ei! Tu tá linda!-Ela me cumprimenta assim que eu entro no carro, deixando um beijo na minha bochecha. Sinto as mesmas queimarem.

-Você também está-A elogio. Ela realmente estava. Quer dizer, ela era. Não pude ver sua roupa, por estarmos em um carro, mas só pela maquiagem eu já me sentia bem desarrumadinha ao seu lado. Seus olhos estavam contornados por um delineado fino, e seus lábios perfeitamente preenchidos por um batom vermelho.

Não tivemos mais diálogos que isso, mas pude perceber seu nervosismo pelas suas feições. O teatro não era perto, porém também não era longe. O nosso silêncio não era desconfortável, e estava sendo muito bem preenchido pela voz do Nando Reis que tocava na rádio.

Ela estacionou o carro bem em frente ao teatro, e só quando saímos dele entendi seu nervosismo, o lugar estava bem iluminado, e pela quantidade de gente que entrava, parecia lotado. Entramos em silêncio e andamos até a primeira fila da mesma maneira, dei meu nome e me senti importantíssima por ter lugar guardado para mim.

-Vou ter que ir, jajá começa. Ainda tenho que repassar algumas falas.-Ela explica assim que eu sento no local, esfregando as mãos em nervosismo e intercalando o olhar entre mim e todo o resto do teatro. Por impulso, seguro suas mãos e só então seu olho para fixamente no meu.

-Você vai se sair bem. Tenho certeza.-A encorajo, e ela abre o sorriso.

-Vindo de você, eu acredito.-Acabo sorrindo junto após a frase, mas aquele momento foi interrompido pelo diretor da peça que veio chama-la. Ela se despede beijando minha mão, e logo após desvencilha as nossas, indo atrás do diretor e consequentemente, para os bastidores.

Passaram-se quase trinta minutos de muito tédio e de muita gente preenchendo o local, até o momento que todas as luzes foram apagadas e as cortinas se abriram. A peça se tratava de um drama, de uma mulher abandonada pelo marido que amava mais que tudo no momento que mais precisa dele, durante sua doença. Vitória era arte pura, sua atuação era impecável e até me arrancou algumas lagrimas pelo enredo da história. Suas falas eram fortes e carregadas de emoção, e percebo que o encantamento por ela não partia só de mim, mas sim de todos que preenchiam o lugar. No final de tudo, a mulher se curou, e só após anos, o marido a procurou a querendo de volta. Na minha concepção, quem me visse acharia graça de tanto tempo que passei de boca aberta. A história era boa, os atores eram bons, mas ela...ela era incrível.

As cortinas então se abrem novamente, mas dessa vez, não tinha cenário, não havia nada além de uma intensa escuridão e a silhueta bem desenhada dela, coberta por um longo vestido branco de pano fino.

-Não sinto tua falta.

Não sinto a falta do teu cheiro

de perfume importado

que exportou de mim.-Sua voz sai mais pura impossível, sem ser acompanhada por uma música de fundo ou de nada disso, era só ela.

-Não sinto falta do teu erre puxado

Nem do teu beijo com gosto de dente

que morde coração envenenado.-Olho ao redor e ninguém ousava falar nem um "ai", todos estavam calados e perplexos com a mulher em cima do palco.

-Não sinto tua falta

.Não sinto, nem lembro de você.

Nem lembro da tua respiração ofegante.-Sua voz sai mais rouca que o normal e eu fecho os olhos por poucos segundos para aproveitar mais ainda daquele momento.

-Não sinto falta, eu sinto ânsia.

Distância.

Do teu signo-preto,

Do teu silêncio, o grito.-Sua expressão e movimentos eram regados de emoção, ela se mexia de incomodo, assim como a personagem devia estar e sentia as palavras tão intensamente. Sem tirar o olho dela nem por um mísero segundo, sinto meu coração se aquecer lentamente.

-Sinto ânsia, e a provoco,

Enfio os meus dez dedos na garganta,

Pra ver se vomito teu ser,

Da minha alma.-Um chute. Foi o que eu senti após a última frase ser declamada. Coloco a mão na barriga automaticamente recebendo mais um, e outro, e outro, sinto meus olhos marejarem, era ele, ele estava bem ali, o meu filho.

As cortinas se fecham e uma série de aplausos surgem, corro para o banheiro rapidamente, que por sorte estava vazio. Tiro o casaco e viro de lado, vendo ao olhar no espelho em quanta evidência a barriga que eu tanto escondia estava. Deposito a mão em cima dela novamente, faço um carinho rápido e recebo outro chute, deixo as lagrimas que eu segurava caírem, e finalmente caio na real, tinha um ser ali, uma vida, um pedacinho de mim. Ele estava bem ali, e queria ser notado, queria ser cuidado e amado.

Lembro das palavras de Luana, pedindo para que eu cuidasse do seu sobrinho. Eu estava negligenciando tanto aquilo, ele não tinha culpa alguma dos meus erros, ou dos erros que cometeram comigo.

-Oi, bebê.-falo meio sem jeito e prossigo com o carinho. Eu podia parecer uma retardada falando com ele, mas eu realmente não me importava, não mais. O futuro era incerto, e me assustava diariamente, mas a partir daquele momento, eu só possuía uma única certeza, seria eu e ele, para sempre.

-Ana? Me avisaram que você correu para aqui queria saber se ta...-A voz rouca carregada de preocupação surge no banheiro, e sua frase é interrompida quando seus olhos caem para a minha barriga e para a mão depositada sobre ela. Vitória parecia em choque, sem reação, ela havia descoberto o que eu mais temia, o motivo de eu ter vindo para São Paulo, da distância da minha família, o meu maior segredo.

Não falo nada, sinto um aperto no coração em pensar em não ter sua presença todo dia ao meu lado, de não ter mais sua voz acompanhando a minha, nem de ver seus olhos iluminado pelo pôr do sol de perto. Abaixo a cabeça, quebrando todo o contato entre nossos olhares, esperando que ela fosse embora.

Embora como todo mundo foi.

Segundo solOnde histórias criam vida. Descubra agora