Meu bem.

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Três dias. Três dias que não piso no parque, que não encosto no violão e que não ouço a voz de Vitória junto a minha, que não vejo seu sorriso radiante logo cedo e me pergunto quem é tão feliz naquele horário da manhã. Confesso que já sentia saudade de sua presença. Muita, muita saudade. Mas seria melhor, pelo menos para ela.

Eu estava acabada. Tiro a conclusão após me observar no espelho hoje mais cedo. Eu não dormia bem, tinha diversos pesadelos com o mesmo dia, com a mesma voz, e quem me visse de longe notaria a minha falta de descanso, pelas enormes olheiras roxas. Eu possuía aparência cansada, e na verdade eu nem me importo com aparência nenhuma no momento. Eu só queria ficar em casa, isolada no meu próprio mundinho e assim, não correr o risco de frustrar ninguém.

Quando finalizo o café da manhã, já pronta para voltar para o quarto e fazer nada, ouço a campainha tocar. Ando receosa até a porta, e a abro, dando de cara com ela. Vitória possuía expressão preocupada. Seu sorriso não brincava em seus lábios e seus olhos não pareciam tão brilhantes como antes.

-A gente precisa conversar. –Sua voz sai séria enquanto ela me encara da mesma maneira. Sinto meu corpo gelar.

-Não acho que precisamos conversar nada, Vi. –Reluto, engolindo seco por estar a tratando da maneira que ela menos merecia ser tratada. Automaticamente seus olhos caem em semblante de tristeza, sinto um aperto forte no coração.

-Por que você está me afastando, Ana? –Vitória pergunta com pesar, e olho para o lado, para evitar o contato entre nossos olhos.

-É melhor assim. –Respondo baixo e um longo silêncio se instala entre nós.

-Eu não entendo, eu posso ter sido precipitada e você tem todo direito de ficar chateada, mas nós poderíamos resolver isso, Ninha, basta conversar sobre e...—A voz rouca da mulher a minha frente corta o barulho do nada que rodeava a sala. Ela ao contrário do começo do diálogo soa menos ressentida, mas com um pouco de desespero.

-Vitória... –Tento a interromper, mas logo sua voz se sobressai.

-chegarmos a um consenso. Você não quer isso e eu já entendi, mas eu acredito intensamente em nós duas, em nosso elo, mesmo que ele seja apenas de amizade, e eu nutro isso com todo meu coração... –

-Vi... –Tento novamente, logo após perceber que ela interpretou tudo da maneira mais errônea possível, mas não posso a culpar, eu não havia dado explicações nenhuma.

-E eu sei que tudo parece confuso demais mas eu só...--

-Eu não quero magoar você. –A corto e assim ela fica calada, mas logo sorri de lado, me olhando fixamente com seu olhar-casa.

-Você não me magoaria, Ninha, eu sei disso. –Ela tenta se aproximar mas me afasto de seu contato.

-Você não tá entendendo, Vitória. Eu machuco as pessoas, eu as decepciono, eu mudo a vida delas e o pior que nem é para melhor. Isso acontece sempre. Você não tem ideia de como foi doloroso ver o choro alto da minha irmãzinha, as lagrimas correndo pelo rosto do meu pai que nunca chorou em nossa frente, de sentir o choque da mão da minha mãe contra meu rosto e de ser encarada por todos com tanto desgosto. Tudo isso aconteceu em tão pouco tempo, minha vida mudou drasticamente, e após o dia que eu revelei tudo, tive que vir às escondidas para São Paulo para não sujar o nome da família. Eu cometi um erro, eu sei, mas eu não queria engravidar tão cedo, não queria destruir meu futuro perfeito criado na cabeça da minha mãe, e talvez ela esteja certa, eu não sou digna de confiança de ninguém, de amor e muito menos de crença, pois tudo que eu faço é destruir, destruir tudo que tinha tudo para dar certo. –A esse ponto eu já não controlava as lágrimas, eu estava ali, nua de alma na frente de Vitória, com minhas feridas não curadas expostas a seus olhos. –Você é cheia de luz, Vi, tem alma de pipa avoada repleta de sentimento bom, eu realmente não te mereço, e você, não merece ser rodeada pela minha vida turbulenta, pois se tem uma única coisa no mundo que eu não quero destruir, é a tua felicidade.

-Eu não posso te forçar a nada, nem tenho direito nenhum de mandar em você, mas te peço, nunca mais repita isso. –Vitória fala de maneira mais séria possível, fazendo meu rosto tomar a expressão confusa. –Você é digna de todo amor existente no mundo, inclusive o meu. E eu, que segundo você, tenho tanta felicidade no meu ser, posso te passar ela também. E eu te prometo não te fazer sofrer, te apresentar a vida aos meus olhos e te mostrar que sim, tu é merecedora de admiração, que tu é forte e que tu só precisa ter si mesma para viver. A vida é assim, nos presenteia com algo tirando outras, mas eu te garanto, o que for pra ser, será, não se aperreie não, tudo volta para seu devido lugar. Enquanto isso, eu só preciso que você confie em mim e no meu coração, que tá aberto em tua direção para você encher de teu ser e desse mini tu que tá bem ai. –As palavras de Vitória se chocam com minha realidade momentânea, e levam meu pensamento a rondar diversas vezes ao seu redor. Ela era mesmo um presente em minha vida, a luz que nela faltava e que eu, tola e cabeça dura, tentava afastar. – Você acredita em mim, Ninha? Porque eu acredito em tu de olhos fechados.

E logo após a frase finalizada, levanto a cabeça que permanecia baixa escondendo o meu rosto envergonhado. A frase, exatamente contrária a que me assombrava todos os dias chamou minha atenção. Alguém acreditava em mim. A mulher a minha frente havia me procurado, havia tentado se explicar de algo que nem precisava de explicação, havia se interessado em me ouvir.

-Tu acredita em mim? –Pergunto como uma criança insegura e indefesa, parecendo perplexa com sua constatação e olhando atentamente em seus olhos, eu podia ver sua alma bem dali, ela estava ali, e céus, ela acreditava em mim. Vejo ela confirmando com a cabeça e se aproximando mais do meu corpo, me puxando para um abraço apertado e só ali, no calor do seu ser, meus pensamentos se acertam, e disso eu já deveria ter deduzido, Vitória era minha paz.

Assim passamos todo o resto da manhã, toda a tarde e o comecinho da noite, pois segundo ela, estava com saudade de ver o pôr do sol ao meu lado. Não havíamos mencionado nada sobre o beijo, ou sobre a revelação do meu caos interno de mais cedo, apenas tínhamos conversando bobeira rindo, coisa que durante os três dias de isolamento, não havia feito. Quando ela precisou ir embora, me fez prometer que iria ao parque no dia seguinte e sim, eu prometi, eu iria, eu precisava ir e queria ir. Nos despedimos com mais um abraço lar, e assim ela seguiu pelos corredores do meu prédio, me deixando ali de sorriso aberto e de alma renovada.

Quando sigo no fim da noite para o quarto, vejo sob a mesa da sala um papel dobrado, o abro curiosa por ter total certeza que ele não estava ali antes. Era um pequeno bilhete, numa caligrafia bem desenhada, que dizia:

"Meu bem, teu sorriso me transborda. Tu me olhas e me invade, me fazendo querer estar em tua vida e teus braços fazer de lar. O teu jeito me transforma e tu me faz ficar tão bem! Ninha, a vida passa rapidinho, não espera por ninguém, vamos aproveitar o tempo agora, e no tempo agora, eu não vejo graça e nem de graça quero viver sem você, pois do lado de cá, não há cor sem tu. Meu bem, me deixa te ser?

Com amor, Vitória Falcão"

Segundo solOnde histórias criam vida. Descubra agora