31 - Caleb

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A história de um judeu que foge da perseguição nazista

"Estava perto do meu aniversário de 15 anos. Meu avô e minha avó me visitaram porque iriam viajar no dia 27 de agosto de 1939. Meu avô me presentou com a estrela-de-davi e disse que eu seria um grande judeu. Eu admirava o objeto no pescoço toda hora. De todos os presentes que eu havia recebido aquele, sem dúvida, foi o que eu mais gostei na minha vida. Ela reluzia muito contra a luz e ficava muito bem em mim. Como meu avô só tinha filhas, ele decidiu passar o colar, que fora dele, para o neto mais velho, que era eu. Os últimos dias de agosto foram normais. Eu ia para a escola, minha mãe dava aulas na Universidade Jaguelônica e meu pai advogava em uma empresa de alimentos de Cracóvia. Em 1º de setembro de 1939, Hitler invadiu a Polônia e logo em seguida a Inglaterra e a França declararam guerra à Alemanha e foi o início da Segunda Guerra Mundial, o conflito mais massacrante da história humana. Era também o início da devastação polonesa e o fim dos judeus. Começou uma deportação maciça de judeus para os guetos em grandes cidades. Meus avós nunca mais apareceram. Eu e minha família fomos levados em outubro de 1941 para o gueto de Cracóvia nuns caminhões precários sem comida, água e espaço adequado. Depois de tentativas frustradas de se esconder. A família de uma grande amiga minha, Hanna Szpilman, também foi levada no mesmo dia que nós. Hanna e eu éramos amigos desde a infância. Tínhamos a mesma idade e estudávamos juntos. Ela tinha mais cinco irmãos e morava com eles e os pais numa casa em frente a minha. Quando fomos para o gueto, a minha família, a dela e a do doutor Polanski, um médico famoso em Cracóvia, ficamos numa única residência. Lá, muitos iam trabalhar de graça em fábricas próximas, geralmente com a indústria bélica instalada por Hitler. Eu e meus pais fabricávamos bombas. Os nazistas tomavam conta minuciosamente do gueto e ninguém podia entrar e nem sair sem autorização deles. Em tempos de neve, éramos obrigados a recolher a neve das ruas. O menor descuido possível podia-se ser baleado, ferido ou até morto. Era um verdadeiro confinamento disfarçado. Algumas pessoas ou até famílias desapareciam misteriosamente. Tudo correu 'bem' até o final de 1942. Um dia, não me recordo bem qual, pois a noção do tempo era muito vaga, a polícia de Hitler, vestida com o uniforme negro, chegou e pediu que todos ficassem enfileirados. Separaram homens e mulheres em filas distintas e começaram a contar as pessoas. Eu vi pessoas morrendo em minha frente devido à desobediência ou a intolerância com a presença dos nazistas lá. Às vezes eles espancavam um na frente de todos, empurravam, davam coronhadas ou até baleavam. Havia muitos soldados lá. Eu estava na segunda fileira dos homens da esquerda para a direita. Estava atrás de Joseph e meu pai. Eu tive a impressão que não sairia dali vivo. Haviam dois homens mais velhos atrás de mim e eu os pedi passagem. Um soldado olhou para o meu lado, mas depois voltou a contagem. Eu estudei muito bem a situação para não chamar a atenção dos crápulas e quando achei que ninguém observava em minha direção, sai correndo para o fundo do gueto, em meio às casas. Os malditos, não sei como, me avistaram e junto com seus pastores alemães vieram correndo e atirando para o meu lado. Eu estava descalço, com farrapos de pano no corpo, sentia frio e pisava na neve gelada, o que me deixava com mais frio ainda. Eu conseguia desviar das munições dos soldados e não obedecia às ordens de parar. Eu corria sem rumo pelo gueto à fora. Até que senti uma forte ardência na cintura esquerda. Vi sangue escorrendo de mim mesmo e minha visão ficou turva. Cai ao lado de uma escada de alvenaria, com os olhos fechados, mas consciente. Um soldado, cuja voz escutei, gritou: 'está morto, vamos voltar para a entrada.' Eles pensaram que eu havia morrido. Creio que depois voltariam para desovar meu 'corpo'. Fiquei ali caído por uns dez minutos e não ouvia barulho de nada. Pensei que haviam levado todos para outro lugar. Ouvi uma voz feminina de longe que me gritava 'Caleb, Caleb é você?'. Mãe! Pensei e sorri mesmo que sofrendo de dor. 'Caleb você está bem? Oh não! Está sangrando'. Eu abri os olhos e pude ver, não nitidamente, Hanna ajoelhada ao meu lado. 'Hanna', balbuciei. 'Venha comigo.' 'Não consigo me mover'. 'Eu lhe ajudo, venha.' Ela me segurou pelo ombro e pelo braço e me ajudou a ficar de pé. Cambaleei. 'Cuidado! Mantenha-se firme e fique em silêncio'. 'Está bem', respondi. Fomos, o mais rápido que pude, até uma minúscula porta no chão. 'Entre ai', ela me disse. Eu desci, gemendo de dor, até um pequeno e estreito porão. 'Como encontrou esse lugar Hanna?' 'Meu irmão me disse na semana passada depois que voltei da fábrica, mas ele está na fila agora' ela respondeu-me triste. Eu a abracei oferecendo conforto. 'Ai!' eu estava com muita dor na cintura. 'O que houve aí?'. 'Acho que fui baleado'. 'Você fugiu seu louco!'. Eu não disse nada. Sentei-me no chão e continuava a sentir fortes dores. 'Caleb, tire sua blusa, vou estancar isso.' Eu tirei meu farrapo de blusa bege e entreguei-a a Hanna que a amarrou em minha cintura. Eu estava sentindo frio completamente agora. Ela me ofereceu seu casco, mas eu recusei. Não a deixaria passar frio. Eu adormeci naquele chão fétido com Hanna acariciando meus cabelos. Acordei, com a visão embaçada. 'Caleb meu filho, que bom que está vivo'. 'Mãe?' Agora era ela. Eu estava na residência que dividia com a família de Hanna e do doutor Polanski. 'o doutor Polanski vai cuidar da sua ferida, você perdeu muito sangue.' Minha mãe disse sorrindo para me animar. 'Pensei que vocês tinham sido levados...' 'os nazistas fizeram apenas uma contagem de pessoas', afirmou meu pai. 'Eles devem voltar, aqueles cretinos!', doutor Polanski disse com tom de raiva enquanto preparava alguma coisa, provavelmente para me curar. 'Passou de raspão Caleb, você teve sorte. A mira dos nazistas não costuma ser ruim.' Ele disse enquanto encostava um pano quente em mim. Gritei.'Vou apenas limpar o ferimento, já está em processo de cicatrização'. 'Obrigado doutor', agradeci. Fiquei repousando em uma cama de colchão duro. Hanna, que não saia do meu lado, tinha ar de preocupada. 'Está tudo bem?', perguntei. 'Os nazistas vão voltar', ela parecia ter medo. 'Calma, escaparemos deles', eu sorri e toquei o rosto dela. Eu não precisei ir trabalhar nas fábricas mais, pois fui dado como morto. Era relativo alívio, mas também era angustiante não ter nada para fazer. Eu fui proibido de frequentar a escola e privado de minha liberdade física. Os nazistas não conseguiram, e nunca vão conseguir privar a minha mente. No meio de uns entulhos, eu encontrei cadernos velhos em branco e por lá comecei a escrever contos. Meu passatempo se tornou criar histórias e personagens para um mundo paralelo bem diferente do que eu vivia. Um mundo em que dor e violência eram inexistentes. E foi assim por longos dias. Certo dia, um homem trajando o uniforme negro, veio ao gueto e convocou muitas pessoas para uma espécie de palestra escondida. Julgaram o sujeito louco. Ele se identificou como Jacó e disse ser um judeu infiltrado na SS. Zombaram dele. Poucas pessoas presenciaram a 'palestra' mas eu estava lá. Ele disse que sabia o dia exato em que os nazistas voltariam e disse que dispunha de um caminhão para nos levar até a Espanha, país neutro na guerra. Muitos, inclusive meus pais, acharam ele o maior falastrão da Europa. 'Ele quer capturar judeus mais fácil', meu pai dizia. Eu confiei no tal Jacó. 'Você é maluco Caleb. Onde já se viu crer em alguém que traja um uniforme nazista', meu pai sempre foi um sujeito desconfiado. Por incrível que pareça, o 'louco' do Jacó tinha razão. No dia correto que ele havia mencionado, os nazistas apareceram em quantidade muito maior que na anterior. Dessa vez, não fizeram fila ou contagem, foram invadindo as casas e capturando todos, em seguida, os punham em um comboio de caminhões. Assustados e já preparados para uma fuga, todos da minha residência saíram e correram em direção ao porão minúsculo que Hanna havia me levado. Tinha mais gente lá. Ficamos dividindo um mísero espaço. Hanna e eu sempre juntos, orávamos para nosso Deus. Queríamos sair dali vivos. Em minha fuga da casa, peguei comida e meus manuscritos e os guardei em uma bolsa de viagens. Cada um levou o que pode e o que deu tempo de pegar. Estávamos silenciosos e apreensivos. De repente, um crápula entra no porão e assusta todos. Era o tal Jacó. 'Tem um caminhão esperando vocês a 100 metros daqui, apenas'. Ninguém seguiu o sujeito. Ficamos imóveis lá dentro. Ele não voltou. Quando a agitação no gueto parou, saímos de dentro do porão e voltamos para as residências. Alguns ainda permaneciam alojados dentro do porão. O gueto estava vazio, silencioso, dava medo. Não foi uma boa ideia, os nazistas perceberam movimentação. Por sobrarem mais casas, cada família ficou em um lugar diferente. Eu pude ver da janela da casa que eu estava os soldados invadindo a casa onde Hanna se encontrava. Houve quebradeira. Saíram de lá com todos. Ficamos quietos na casa em que estávamos. Era pequena. Escutamos batidas na porta. Batidas fortes. 'Esconda-se com as crianças. Eles vão me levar, não vocês', meu pai disse a minha mãe e deu-lhe um beijo no rosto. 'Caleb, esconda-se com seu irmão, eles não vão levar vocês', minha mãe pediu. 'Joseph, fique dentro do armário, eles não vão levar você', eu disse carregando meu irmão e o colocando dentro do armário. 'Caleb, porque você não vem?' meu irmão perguntou. 'Preciso proteger o papai e a mamãe, fica quietinho ai, não saia por nada viu?' e ele acenou com a cabeça em sinal positivo. As batidas persistiam. Meu pai abriu a porta. Era a Hanna! 'Senhor Benjamin, por favor, eles levaram meus pais e todos os meus irmãos, eu estava em baixo da cama e por isso não me viram, não me deixe sozinha'. 'Entre Hanna, rápido', meu pai puxou Hanna pelo braço e fechou a porta. 'Eu pensei que tinham te levado', eu falei abraçando-a. Ela se deitou numa das camas. Ela chorava. 'Nós vamos achar sua família Hanna', minha mãe tentou tranquilizá-la, em vão. Ela só chorava. Eu a beijei, suavemente nos lábios, para acalmá-la. Ela ficou um pouco melhor. Dividimos a precária comida para cinco. Ficamos na casa por apenas três dias. Jacó voltou ao nosso encontro, havia outras famílias naquele porão e todos fomos para lá. 'Eles ainda voltarão, deixe-me levá-los...' 'Como vou saber se você vai realmente nos levar para a Espanha?', meu pai indagou como sempre desconfiado. 'Eu sou judeu homem, assim como você. Eu quero livrar todos dessa barbárie! Vocês sabiam que daqui e de outros guetos os judeus são levados para campos de trabalho?' Todos se assustaram, inclusive eu. Um silêncio pairou. 'Se eu quisesse mesmo prejudicá-los, bastava acionar os nazistas agora mesmo', ele disse. Ninguém falou nada. Não havia saída, ou ficávamos e éramos aprisionados, ou íamos para um futuro incerto. Todos que estavam no porão decidiram ir, menos Hanna. 'Por que você não vem? Vai ser bom para nós', eu disse tentando convencê-la. 'Eu vou ficar e achar minha família', ela dizia com a cabeça baixa. 'Vamos comigo, serei sua família, não quero perdê-la, ainda mais para os nazistas', eu acariciava os cabelos dela e beijava sua mão. 'Deixe-me aqui, vá! Siga seu caminho, você deve proteger sua família', ela chorava. 'Eu não irei sem você.' 'Eu não vou Caleb, não mesmo!', ela protestava. 'O que eu devo fazer para não te perder?', indaguei. 'Prometa-me que vai retornar'. 'Não sei nem se ficarei vivo'. 'Prometa-me!', ela insistia. Seria uma promessa absurda, mas eu a fiz. Lembrei-me do meu colar, presente do meu avô que eu guardava embaixo da blusa para os nazistas não tomarem de mim. Retirei-o do pescoço e disse para Hanna: 'eu voltarei. Guarde isso para mim. Quando eu voltar, quero-o de volta'. Eu prendi o colar com a estrela-de-davi no pescoço da garota, beijei-a a testa e levantei-me, pois estava ajoelhado na frente dela. Ela o escondeu dentro da blusa, assim como eu fazia. Essa foi nossa despedida. Eu nunca mais a vi. Sai do porão e fui direto para o caminhão do Jacó. Uma grande estrada deveríamos percorrer. No início, a loucura de escapar deu certo. Jacó e mais dois judeus disfarçados de nazistas bancavam os soldados macabros de Hitler. Eu estava com meus manuscritos bem protegidos na bolsa. O caminhão era pequeno para tamanha gente. Ficamos um dia dentro dele. 'Estamos na Alemanha. Terra do podre Führer', Jacó disse enquanto parávamos para comer e tomar água. Eis que soldados apareceram e viram-nos. Logo vieram em nossa direção. Eles conversaram com Jacó e os outros dois. Exigiram credenciais. Ninguém as tinha. Foram baleados e, consequentemente, mortos ali mesmo. Muitos perceberam a agitação e saíram correndo. Ao correr, deixei cair meus manuscritos. Vi os nazistas atearem fogo neles e zombarem do conteúdo. Fiquei triste com a cena que vi. Meus olhos lacrimejaram. 'Corra Caleb!', meu pai gritou para mim. Consegui forças para mover minhas pernas e seguir minha família. Encontramos uma pequena entrada e arriscamos entrar nela, pois os soldados nos perseguiam. Tínhamos chegado ao porão, era início de 1943. Temíamos sermos descobertos. Até hoje tememos. O medo é comum demais para todos nós aqui."

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