16 - Caleb

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Pai desconfiado

           
Desde que o pequeno Schuzy apareceu no porão e foi adotado por Lisie, trazia alegria a todos. Caleb era tão alegre como nunca imaginou ser desde que aquele modo de vida cruel havia consumido tudo de bom que ele tinha, mas Lisie sim era o motivo de tamanha alegria.

Sentir-se livre dentro de um porão era tanto quanto contraditório. Só que entre razão e emoção há uma enorme diferença, portanto, o coração de Caleb pairava na suave liberdade das emoções. Ele continuava a escrever no caderno rosa de Lisie em alemão e em seu caderno marrom, o ilustre presente de aniversário, ele redigia poemas e textos em polonês e às vezes em inglês. Era essa tal liberdade que ele desfrutava.

Estava criando um texto para Lisie quando ela chegou ao porão. Fechou rapidamente o caderno marrom e fingiu não estar fazendo nada. O que não agradou o rapaz é que a bela Lisie trajava o uniforme da Juventude Hitlerista.

– Que roupa é essa? – ele perguntou decepcionado.

A garota olhava para seu traje. No alto de seu braço direito havia uma suástica.

– Me desculpem, eu me esqueci de trocar de roupa.

Percebendo o semblante de tristeza da garota, Caleb tentou consolá-la.

– Não precisa se desculpar você não fez por querer, sei disso.

– Não se preocupe Lisie, o que importa são suas intenções para conosco. – a mãe a recebia gentilmente.

Sarah gostava muito de Lisie. Sempre a elogiava para o filho, falava bem dela, o que deixava Caleb aliviado e agradecido. O pai sempre desconfiava da menina e alertava que ela poderia entregá-los a qualquer custo, o que claro, Caleb duvidava.

Numa noite do final de setembro, um vento suave meio frio penetrava pela janela do imenso quarto de Lisie. Caleb apreciava-o em seu rosto.

Lisie lia textos em voz alta no caderninho rosa. Escutar a voz suave da menina fazia-o sentir-se melhor.

Uma mão delicada tocou seu ombro magro. Era a mão da princesa. Quando os olhos dos dois se encontraram uma energia positiva instalou-se no local. A vontade de Caleb era logo tocar os lábios de Lisie com os seus e envolvê-la num abraço quente e intenso.

Schuzy miava. O que distraia os jovens e fazia-os esquecer do tão esperado beijo.

– Gostei de um texto! – Lisie sorria maravilhosamente para Caleb o que engrandecia seu coração judaico absurdamente ferido.

– Qual você gostou? – ele retribuía o singelo sorriso e podia sentir-se tremendo por dentro de tanto aflição e vontade de tocá-la mais além do que aquilo.

"o sopro constante de uma alma perdida em um pântano, reflete o quão tão forte alguém é diante dos desvios permanentes que o amor na guerra de sentimentos pode causar. Em um único coração sonhador e frágil, frágil tal qual pétalas de rosas brancas despencando de seu sustento, há tanto amor quanto se pode medir".

– Esse é bonito mesmo. – Caleb se sentia envergonhado, pois aquele texto foi criado tendo a menina como inspiração. (a maioria dos textos redigidos por ele, tanto no caderno rosa quanto no marrom, eram inspirados em Lisie).

– Eu o amei! É perfeito para ser exposto por aí. Uma coletânea com seus textos seria sensacional.

– Eu queria ser escritor, mas não posso publicar nada porque os nazistas destroem tudo. – ele olhava fixamente para as estrelas no céu escuro. Uma lágrima de leve insistia em sair por seu olho e transmitir toda aquela tristeza que o perseguia. Mas, ele a conteve. Não ia chorar diante de uma moça.

– Eu sei. Eu já vi fogueiras com livros de autores judeus. Os soldados tacam fogo sem piedade.

– Isso mesmo. Eu já presenciei também. – os dois conversavam sem se olhar.

– Caleb?

– Sim... Lisie. – desta vez ele olhava profundamente os olhos da garota.

– Você já teve livros queimados?

Caleb se surpreendeu. Como ela sabia daquilo? Ele não queria responder. Não queria falar do seu passado.

– Bom... não é exatamente isso... é... bom...

– Confie em mim! – Lisie sorria demais. Ela carregava Schuzy no colo e alisava seu pelo branco e cinza macio.

– Os nazistas queimaram três cadernos que eu tinha.

– O que tinha neles?

– Contos.

A tristeza o consumia por inteiro e seus olhos transpareciam as lágrimas que queriam escapar. Viu que Lisie colocou Schuzy no chão. Como num piscar de olhos, os dois estavam envolvidos num abraço. Aquele abraço que demonstra confiança, carinho.

– Não fique assim. Use aquele caderno que lhe dei para dar continuidade ao seu trabalho que é maravilhoso. Você escreve como nunca vi em minha vida. Depois lhe compro outro caderno e você escreve tudo que você quiser. E eu terei o imenso prazer em ler.

O semblante de Lisie, juntamente com seu sorriso, fizeram Caleb delirar. Ele não pensou duas vezes e colou seus lábios grandes na boca delicada de Lisie. Viu a menina se esquivar com certa pressa e levar mão a boca. Os olhos dela estavam arregalados. O rapaz tentou se desculpar:

– É... não foi minha intenção... me...me desculpa é... desculpa foi...sem querer...

– Eu acho melhor você descer. – ela disse de costas para ele.

– Tudo bem.

Caleb abaixou a cabeça e sem dizer mais nada foi para debaixo da cama e logo já estava descendo a escada de madeira velha. Ao chegar lá em baixo viu que sua mãe e seu irmão dormiam e seu pai estava sentado com a lamparina na mão.

– Filho você arrisca demais a sua família. – Benjamin tinha um semblante sério.

– Não estou entendendo pai.

– Sente-se aqui. – o pai apontava para o chão ao lado dele. Sua barba enorme e seu cabelo cacheado fediam a suor e Caleb sentia isso à medida que se aproximava.

– Senhor. – Caleb disse olhando para o pai.

– Se afaste dessa menina Caleb, se afaste. Isso vai dar problemas para nós.

O que Benjamin pedia soava como uma ofensa para Caleb.

– Pai é ela que nos trás comida, água, vestimentas e até coisas que não necessitamos como a bola de Joseph.

– Isso é jogo de nazista. Quando você cair por completo, vão te fisgar.

– Ela não é assim!

– Não seja imaturo meu filho. Você já é um homem. Sabe que ninguém gosta de nós aqui, não se iluda! Essa garota está mexendo com você e isso não pode ocorrer porque ela é a isca do pai dela.

Caleb não sabia o que falar para o pai. Não podia desafiar a autoridade dele.

– Não se prenda a ela, não dependa dela. Deixe que ela traga comida, mas não se aproxime, não se renda. Eles querem isso. Querem um judeu criminoso. O judeu que agarra mocinhas em suas casas é perfeito para ser condenado e humilhado. Não seja tolo Caleb!

"Isso não é verdade." Caleb pensava, mas as palavras não saiam de sua garganta para serem ditas.

– Pense bem filho. Não procure o que você não quer achar.

Caleb não dormiu bem aquela noite.

Três noites depois, Lisie chamou Caleb para subir ao quarto novamente. Desta vez ela morria de raiva dele.

Amor na GuerraOnde histórias criam vida. Descubra agora