O novo irmão
Caleb era o verdadeiro criado dos soldados de Hoffnung. Ele limpava o chão, os móveis e os dois banheiros da casa. Com a supervisão de um soldado, ele também limpava os quartos dos soldados. O jardim era obrigação de Hanna e a cozinha ficava por conta do garotinho Samuel. A casa era de fato enorme para abrigar um tanto de gente, mas o serviço não era exaustivo se comparado ao que seu pai fazia. O problema era a humilhação e as agressões que Caleb sofria a todo o momento. Qualquer soldado que passasse ou se aproximasse, dava um tapa, um empurrão ou até uma chicotada nele, além de pronunciarem ofensas grotescas contra ele e sua raça. Parecia que todos ali sabiam quem ele era. Um dia, um soldado o chamou, por ironia, de genro do comandante e lhe fez debruçar-se na mesa sem sua blusa do uniforme listrado. O soldado lhe deu 30 chicotadas e disse que elas valiam por trinta beijos dados em Lisie. Saiu rindo. Outra vez, um soldado gordo derrubou terra no chão e o fez limpar, derrubou de novo e o fez limpar de novo e mais uma vez derrubou mais terra e o fez limpar tudo. Ao servir o jantar dos soldados, eles punham o pé para ele tropeçar e a comida que caia eles esfregavam em seu rosto. Um dia, jogaram-lhe cerveja e o chamaram de bêbado "para mexer com a filha do comandante devia estar muito embriagado" um soldado disse. O comandante apenas o olhava de espreita. Ele fazia não só Caleb, mas todos temerem-no. Não seria possível uma menina tão doce ser filha de um homem tão cruel.
Mas, foi Derek Kupffer que se autodeclarou seu inimigo número um. Aquele ali quando chegava perto era agressão na certa. Ele lhe dava chutes, beliscões, coronhadas, empurrões, chicotadas ou arremessava algo em sua direção. E sempre que Caleb estava por perto trabalhando, e Derek conversava com alguém, Kupffer falava de seu amor por Lisie, de suas aventuras na infância e de seu casamento. Caleb sabia muito bem que Lisie não correspondia aos sentimentos profanados por Derek e, por isso, concluiu que ele falava disso única e exclusivamente para irritá-lo.
Numa tarde chuvosa em Hoffnung, Caleb escutou uma conversa entre o comandante e Derek. Esse não era um diálogo feito para que ele ouvisse e sim uma coisa bem pessoal. Ele escutou que já havia um mês do desaparecimento de Lisie e que ninguém da tropa havia encontrado nem rastros da menina. Sentiu uma voz triste do comandante. Lisie havia sumido!
De início, Caleb pensou que ela queria fugir de seu casamento arranjado, mas depois começou a achar que ela vagava pelas ruas tentando encontrá-lo. Ele sentiu-se feliz em pensar que ela o estava procurando. Ele sorria abestado enquanto limpava o chão da cozinha. Hanna, que já tinha acabado suas tarefas no jardim e estava ajudando o pequeno Samuel a descascar batatas, observava-o o tempo todo. Ela comentou:
– Viajando em seus devaneios Caleb. Sempre foi ficcionista!
Eles não podiam conversar muito. Qualquer suspeita de conversa era motivo para castigos. Por essa razão, eles conversavam em tom baixo e em idioma diferente; polonês, hebraico ou iídiche. Somente com Samuel era necessário falar alemão, nativo da Alemanha e com pouco domínio do hebraico, essa era a única língua que ele compreendia com perfeição. Hanna aprendera alemão graças a Caleb que a ensinou quando iam à escola.
– Não a tempo para ficção quando se vive uma realidade como essa. – Caleb respondeu com educação.
– Às vezes, a ficção nos liberta de tudo isso aqui. – ela rebateu.
– Vejo que está mais ficcionista do que eu. – ele riu.
– Você me ensinou. – ela riu de volta.
O contato entre eles era muito forte. Conheciam-se desde crianças e estavam sempre juntos para tudo. Era impossível desfazer os laços que por ali se formaram. Antes de conhecer Lisie, Caleb acreditava ser Hanna o amor de sua vida. Ele a protegeu, a beijou e foi seu companheiro em vários momentos. Depois de conhecer Lisie ele teve a certeza do que era amor. Mas, ele percebia que Hanna sentia algo a mais por ele e que isso não passou. Parecia que Hanna se sentia até mais segura com a presença dele ali.
Depois de várias oportunidades de conversa, Hanna contou que estava em Hoffnung desde meados de 1943. Ela também disse que nunca mais viu ninguém de sua família e que algumas vezes os soldados tocavam partes de seu corpo. Disse também que passou fome dentro do porão no gueto e que não tinha coragem de sair para buscar comida, bebia água das goteiras do teto ou colocava neve na boca para sanar a sede. Ela foi a última a sair do gueto.
Quando Caleb questionou se ela, em seu subcampo, havia visto sua mãe, ela disse que não e que poucas mulheres sobreviviam para serem confinadas. "Eles preferem homem devido a força de trabalho ser maior", ela disse. Contou que sobreviveu porque os soldados procuravam uma empregada e ela teve a "sorte" de estar com 18 anos e em boa forma em relação às outras garotas. Ao ser questionado sobre seu cabelo permanecer intacto, embora devido à desnutrição e ao estado de humor ele estivesse caindo, ela disse que quando chegou os soldados não permitiram que um homem a tocasse para retirar seus pelos corporais.*
– Meu cabelo foi uma salvação! – ela disse.
– Por quê? – Caleb estava curioso.
Porém, um soldado interrompeu a conversa. Seu alvo, no entanto, era o menino Samuel. De tanta fome, ele estava comendo as batatas que havia descascado. O soldado deu-lhe uma bofetada no olho. O menino caiu no chão e por lá ficou.
Ao perceber que ninguém estava por perto, Caleb foi em direção do garoto, passou a mão grande e ossuda em seu rosto. Ele se lembrou de seu irmão. Quase chorou. Samuel estava com o olho direito roxo.
– Vai ficar tudo bem viu rapazinho. – ele abraçou o menino.
Samuel chorava baixo. Assim como todos os prisioneiros, estava subnutrido, fraco, magérrimo e faminto. Para uma criança isso é inadmissível. Para qualquer ser humano na verdade, mas em especial as crianças por serem completamente indefesas.
– Fica calmo, não chore. Quando alguém lhe vier fazer mal, pense em coisas boas que lhe deixem feliz e o mais importante, pense em Deus.
O menino se fundou em meio à roupa listrada de Caleb. Ele não era muito de falar, o medo era nítido nele.
Caleb sentia cada vez mais falta de Joseph e estava perturbado por não saber de seu paradeiro. Estava fazendo por Samuel o que fez e faria milhões de vezes por seu irmão: proteger.
Era o início de uma grande história de fraternidade entre os dois.
*na verdade os soldados não iriam se importar se um homem retirasse os pêlos de uma mulher, mas esse detalhe , criado por mim, será fundamental para o andamento da história.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Amor na Guerra
Narrativa StoricaROMANCE/FICÇÃO HISTÓRICA 4 de maio de 1943 Já faz 3 anos e 9 meses que a Segunda Guerra Mundial começou. E pouco mais de um ano que a "Solução Final para a questão judaica" foi posta em prática. Lisie Schmidt tem 17 anos . É uma alemã filha de um d...