26 - Lisie

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2 de dezembro de 1943


Passada uma semana do aniversário de seu pai e Lisie continuava intrigada com a presença misteriosa do tenente Klotz em seus aposentos. Certamente, se ele quisesse pegar os judeus já o teria feito, sem delongas. "O plano da mamãe fracassou. Foi o papai quem mandou aquele tenente aqui" ela pensava deitada em sua cama, fazendo carinho em Schuzy com a mão esquerda e segurando sua flauta transversal com a direita.

Já tinha explicado a Caleb o motivo de seu pranto inusitado naquela noite e até contou de seu admirador, Franz, e da rincha infantil com seu noivo, Derek. Também, comentou com a mãe sobre o ocorrido. Resolveram, então, vigiar em certos intervalos de tempo a entrada do porão que dava para o lado exterior da mansão, colocar mais um cadeado e exigir ainda mais cautela da família refugiada. Mudaram o horário de levar as refeições para o fim da tarde.

O que persistia, Edith não sabia, eram os encontros noturnos entre Lisie e Caleb no quarto da menina. Totalmente no escuro, às vezes com uma pequena luz de abajur, com muita música e poesia, a cristã e o judeu se tornavam cada vez mais íntimos.

– Onde está o seu caderno rosa, o qual eu lhe escrevia poesias? Tem muito tempo que não as escrevo para você minha princesa, está um tédio no porão e eu poderia voltar a escrever para você. Seria uma honra! – Caleb disse isso na noite de 2 de dezembro de 1943, em um de seus encontros noturnos com Lisie.

Lisie tinha se esquecido do caderno. Preferiam tanto ficar conversando sobre assuntos diversos ou brincando com Schuzy, que não se lembravam dos poemas compostos por Caleb.

– Está aqui! – ela foi até a sua penteadeira e abriu uma gaveta. O caderno que sempre esteve lá, junto com Mein Kampf, embora não tivessem nada a ver, não estava mais lá!

Lisie levou um susto, saiu desesperada procurando no armário, em seus pertences e até nas roupas íntimas. Vasculhou seu quarto inteiro. Nem sinal do caderno rosa que ganhou de sua avó em seu aniversário. Pediu a Caleb que fosse ao porão e procurasse o tal caderno.

Embora o rapaz tivesse plena certeza de que o caderno não estava no porão, desceu e procurou por ele.

Ao retornar para cima, trazia em sua mão grande e ossuda, apenas o caderno marrom que Lisie havia presenteado-o.

– Você pode ter guardado em outro cômodo. – Caleb fez uma ressalva.

– Não. Eu nunca o tirei do meu quarto. Ele era uma espécie de desabafo para mim, não queria expô-lo a ninguém. Apenas a você que compartilha sentimentos parecidos com os meus. – Lisie estava desanimada.

– Eu agradeço muito a sua confiança em mim. – Caleb sentou-se ao lado de Lisie na cama, tocou-lhe a mão e a beijou com ternura. – eu também confio muito em você princesa. Mas acho que você pode ter se enganado. Isso acontece. – tocou-lhe os cabelos com a outra mão.

– Eu tenho certeza absoluta. – Lisie respondeu com a cabeça baixa.

– Procure-o com calma amanhã. – Caleb sugeriu.

Foi nesse instante que mais uma vez a mente de Lisie ficou clara.

– Não é necessário procurá-lo, ele não está aqui. – seu rosto se corou de vermelho-sangue. Sinal de raiva ou irritação.

– Por Iavé*! O que houve princesa?

– Aquele maldito tenente o levou.

– Mas ele vai saber sobre mim. – o semblante de Caleb era de desespero.

Lisie o abraçou com carinho. Beijou-lhe a face magra. Sentiu o garoto tremer.

– Enquanto eu estiver viva e você e sua família estiverem nesse porão de baixo do meu quarto, nada e ninguém vai atingí-los. Nem mesmo o meu pai, está ouvindo? – ela segurava o rosto de Caleb com as duas mãos.

– Isso é perigoso. Ninguém pode contra eles. São poderosos demais! – o jovem judeu estava apavorado.

– Eu posso, pois conheço na palma da minha mão a pessoa que comanda essa barbárie toda, que atende pelo nome de Wichard Schmidt.

Caleb tremia mais ainda.

– Nada é capaz de superar laços verdadeiros entre humanos Caleb. Nem mesmo Hitler com suas ideias perplexas, nem mesmo meu pai sendo idolatrado e respeitado, dotado de poder e capaz de destruir. Eles não são fortes o bastante contra os seres humanos, porque eles não sabem o significado de um sentimento verdadeiro entre humanos.

Aquela intelectualidade fez o encontro noturno de 2 de dezembro de 1943 terminar com um longo beijo apaixonado entre dois corações puros e sofridos com as atrocidades macabras do Nazismo alemão. De um lado, a menina frágil, doce, meiga, sorridente, que teve sua vida de mimos transformada em uma vida de responsabilidade e segredos. Do outro, um jovem judeu massacrado pelo terror, que teve seu corpo aprisionado em um porão da mansão de um comandante nazista, mas que podia viajar para qualquer lugar do universo em seus pensamentos criativos. Era o amor na guerra.

Lisie não contou nada a sua mãe. Queria tomar conta da situação sozinha. Mal sabia ela o destino que os aguardava...

*Iavé - denominação de Deus para os judeus.

Amor na GuerraOnde histórias criam vida. Descubra agora