59 - Wichard

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O flashback de Wichard

Eu nasci em 25 de novembro de 1900 em Stuttgart, Alemanha. Meu pai era um comerciante renomado por toda a região e sempre vazia viagens para comprar e vender produtos. Minha mãe tinha que ficar em casa tomando conta de três meninos muito travessos: eu, meu irmão mais querido Werner e meu irmão caçula Wilmer. Nós costumávamos sair na rua para brincar, mas eu e Werner gostávamos mais de nos esconder atrás dos carrinhos de frutas dos quitandeiros e jogar frutas podres nas senhoras. Hoje vejo o quão insana era essa brincadeira. Meu irmão Wilmer sempre foi estudioso e inteligente, enquanto que eu e Werner detestávamos ir à escola. Bom, começamos a gostar de frequentar a escola quando duas garotas nos despertaram o interesse, ambas da sala de Werner. Ilsa encantou os olhares de Werner aos 12 anos, e eu aos 13 quase 14 anos me encantei por Edith. Claro que a minha relação com Edith se tronou sólida quando eu já tinha 17 anos, porém Werner foi precipitado demais. A Grande Guerra começou em 1914 e em 1916 meu pai foi convocado pelo exército alemão a lutar na guerra. Foi um choque para todos nós e minha mãe começou a se apoiar mais em mim emocionalmente. Ela contava com forças que eu não tinha, mas eu deveria demonstrar a ela que estava sempre disposto a tudo. Eu era o mais velho e esse era meu papel. Já em julho de 1917, faltando quatro meses para eu completar 17 anos chega uma carta em nossa casa me convocando para o exército. Juro que quase tive um ataque cardíaco. Eu não queria ir para a guerra, não queria morrer e uma coisa era demonstrar ser forte para minha mãe, outra coisa era demonstrar ser forte diante de um exército em combate. Nesse mesmo dia minha mãe me mandou sair em busca de pão, com a guerra veio o racionamento e, por isso, achar pão se tornou algo muito difícil. Eu peguei minha bicicleta e fui pedalando pelas ruas de Stuttgart em busca do pão. Acabei achando num subúrbio dois pães queimados e entreguei cigarros que meu pai deixara para trás em troca deles. Eu estava desorientado. O conteúdo da carta do exército revivia em minha mente e não me dei conta de que estava atravessando uma avenida movimentada e quando recobrei os sentidos, estava com o pé inchado e roxo. Uma fratura. O capitão do exército chegou a ir à minha casa saber o motivo de eu não ter me apresentado diante de uma convocação tão séria em prol da pátria, mas ele viu o gesso recobrindo toda a minha perna. "ele foi atropelado e seu pé ficou preso entre os ferros da bicicleta", disse minha mãe ao capitão. O capitão olhou para Werner que estava ao meu lado e disse: "esse aí serve", Werner engoliu seco. Creio que ele sentia os mesmos medos que eu. Nada adiantou. Werner foi convocado em meu lugar. "Mas ele só tem 15 anos!", minha mãe tentou resistir. "Precisamos de pessoas no front", o capitão retrucou. Werner resistiu e não se apresentou ao batalhão. O capitão voltou em nossa casa e deu cinco minutos para que ele pudesse arrumar suas "trouxas" e ir embora para o front ocidental de batalha. Lembro-me claramente de Werner tentando abraçar minha mãe e o capitão arrastando-o porta a fora. Lembro-me também de Werner gritando para mim "Ilsa, Ilsa", mas na hora eu não compreendi muito bem o recado. Pensei em tratar-se de avisar Ilsa que ele havia partido, mas a situação era bem mais complicada. Eu não podia sair de casa, nem no meu quarto eu estava indo porque ele ficava no segundo andar. Fique por 90 dias dormindo na sala. Chamei meu irmão Wilmer e pedi que ele enrolasse minha mãe caso ela acordasse de seu sono da tarde e disse que não demoraria. Muletas para mim não serviam de nada e eu fui praticamente pulando em um pé até a escola, porque era uma dor insuportável quando eu colocava o pé fraturado no chão. Vi Edith conversando com umas meninas e chamei-a. Eu estava encostado no muro do colégio. Edith veio em minha direção. Eu disse que nossa relação ficou séria quando eu tinha 17 anos, mas eu não tive escolha, tinha que dirigir minha palavra a aquela linda garota. "Você não iria para a guerra? ''- ela indagou. Não precisei dizer nada, apenas apontei para o gesso em minha perna. Expliquei a ela e pedi que contasse a Ilsa que Werner havia ido em meu lugar. "Wichard, a Ilsa está grávida!"– levei um enorme susto ao ouvir Edith dizer aquilo. Werner e Ilsa realmente se precipitaram muito. Enquanto eu nem tinha uma namorada, Werner já estava caminhando rumo à paternidade. Com 15 anos. Ilsa também tinha 15 anos, o que me fez imaginar que os dois iriam ficar brincando que o bebê era uma boneca. Nesse mesmo dia, porém mais tarde, Ilsa apareceu enfurecida em minha casa. "Por que você permitiu que ele fosse? Você é o mais velho, você deveria ir!" – ela gritava comigo. Eu estava sem reação e também não iria tratar mal uma garota. Minha mãe apareceu e conteve Ilsa de sua agitação. Todos sabíamos que Ilsa e Werner eram namorados, mas ninguém imaginava que tudo se tornaria tão sério assim em pouco tempo. Entendendo o nervosismo de Ilsa, eu falei, sem pensar nas consequências imediatas: "eu te ajudo a cuidar desse filho se o Werner não voltar!". Minha mãe, Ilsa e Wilmer ficaram parados boquiabertos. Ilsa se encolheu como uma roupa recém-lavada, minha mãe olhava para Ilsa com um semblante de espanto e Wilmer no meio daquilo tudo sem entender nada. "que filho?" –minha mãe questionou. Ilsa saiu correndo porta a fora. Ilsa foi expulsa de casa quando sua barriga começou a aparecer e minha mãe, mesmo revoltada, acolheu Ilsa e Hans, meu sobrinho mais velho, nasceu em fevereiro de 1918, no dia 19 dois dias após o aniversário de seu pai. Nós recebíamos cartas do meu pai e de Werner com certa regularidade e, então, até o nascimento de Hans, os dois estavam vivos. Ilsa escolheu o nome, em homenagem ao seu falecido avô. A Grande Guerra acabou em 11 de novembro de 1918 e cinco dias depois estávamos eu, Wilmer, minha mãe, Ilsa e o pequeno Hans esperando ansiosamente a chegada do meu pai e de Werner. Eles foram os últimos a descerem do trem, mas quando Werner viu Ilsa e o pequeno Hans ele foi correndo dar um beijo em sua namorada e segurar o filho no colo, seus cabelos estavam tão grandes que ele parecia uma menina. Foi necessária uma autorização para que Werner e Ilsa pudessem se casar, mas a cerimônia aconteceu no dia 26 de novembro, um dia depois do meu aniversário. Meu pai exigiu que Werner e Ilsa saíssem de casa e fossem construir sua vida juntos. De inicio Werner conseguiu emprego como zelador de uma escola, mas logo uma oportunidade surgiu em sua vida para que ele fosse trabalhar em Frankfurt, me despedi de meu irmão com uma imensa tristeza. Por lá ele e Ilsa tiveram mais três filhos: Artur, Amelie e Eveline, todos antes de Lisie nascer. Meu pai havia feito muitas amizades enquanto servia na guerra, mas uma amizade foi crucial para que tudo chegasse a esse ponto: Adolf Hitler. Ele que era o mensageiro do front e sempre conversava com meu pai quando estavam no alojamento. Poucos anos depois, esse amigo do meu pai começou a chamar muita atenção em Munique e meu pai fez questão de me levar até lá para conhecê-lo pessoalmente. Em novembro de 1923, eu e meu pai desembarcamos em Munique e ficamos hospedados na casa de um grande amigo Rodrigo Kupffer que havia se casado recentemente e seria pai dentro de oito meses. Pudemos acompanhar o Putsch da cervejaria de Munique. Foi um fracasso para o amigo de meu pai. Para evitar que fôssemos envolvidos em grandes problemas, retornamos a Stuttgart, porém meu pai fazia visitas a seu amigo em Munique. Eu me casei em 1921 com Edith e ela já tinha ficado grávida duas vezes e perdido os bebês. Estava tão desanimado com o casamento. Meu irmão Wilmer havia se apaixonado por uma moça antipática que acabou por afastá-lo de nossa família. Eles se casaram em 1925 e tiveram um filho no início de 1926, pouco antes de minha princesa nascer. Em setembro de 1925 Edith me dá a noticia que estava grávida novamente. Eu não tinha mais esperanças. A gravidez ia progredindo conforme os meses iam passando e em 4 de maio de 1926 nasceu a luz da minha vida, a única pessoa que valeria a pena deixar um legado, Lisie Schmidt. Minha única filha. Confesso que eu esperava que nascesse um menino, mas quando vi aquele rostinho de princesa pela primeira vez, me encantei. A minha mãe estava se destacando na Alemanha como uma bela flautista, ela fazia várias apresentações e chegou até a se apresentar em Berlim. Lisie desde muito pequena adorava ouvir minha mãe tocando flauta e quando ela completou sete anos em 1933 eu lhe presenteei com uma que ela logo aprendeu a tocar muito bem. 1933 foi o ano da glória para nós alemães. O amigo do meu pai foi nomeado chanceler e eu tinha viajado até Munique para revê-lo. De inicio, ele não gostou de mim e nem do meu porte físico. Na verdade ele esperava o meu irmão Werner que ele havia conhecido na Grande Guerra. Com insistência de meu pai, Hitler me apresentou a Heinrich Himmler que concordou em me recrutar para a SS. Desde então, minha vida só melhorou. Com meu comportamento extremamente de acordo com o que era exigido, fui sendo promovido rapidamente até me tornar um oficial. O próprio Hitler, que agora era Führer, solicitou minha presença em seu bunker em Berlim. "Estamos construindo um campo na Polônia especialmente para você comandá-lo". – ele me disse. Eu fiquei muito feliz, queria pular de tanta alegria, mas tinha que me conter diante do grande Führer. Era 1940, o campo de concentração e extermínio Hoffnung tinha ficado pronto. Fui presenteado com uma mansão em Stuttgart, onde ocorreu uma linda festa em homenagem a mim e ao campo. Tive a opção de levar minha esposa e minha filha comigo, mas preferi deixá-las na mansão. Meu pai era chefe local do partido nazista em Regensburg e estava morando lá desde 1936. Ele retornou a Stuttgart em 1943 aposentando-se e ele e minha mãe ficaram em nossa mansão, já que venderam a outra casa que morávamos. Wilmer continua em Stuttgart com sua esposa e filhos. Tive que tomar uma série de medidas para que pudesse deixar um legado surpreendente a minha filha. Logo no início do governo de Hitler, lembro-me muito bem dela assistindo a prisões de judeus e suas lojas sendo saqueadas e quebradas. Ela me disse: "coitados papai". Levei um susto. Fui percebendo que Lisie tinha um coração bem mais humano, embora judeus não mereçam piedade. Aos poucos fui retirando informações dela, para que assim ela me aceitasse como o pai super-herói que sempre fui para ela. Até a empregada da casa eu demiti. Mas, eu tinha que encaminhá-la aos rumos do nazismo mesmo que tardiamente.

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