O senhor Laforet batia repetidas vezes na porta do quarto de Thierry enquanto o chamava para mais um dia. O seu filho, entretanto, insistia em fingir não ouvir, afundando cada vez mais seu corpo nos lençóis da cama.
Thierry tivera pesadelos a noite toda. Normalmente estes não o perturbavam, pois ele nunca havia conseguido dormir tempo o suficiente para que se fixassem em sua memória. Isso quando conseguia dormir.
Contudo, na noite anterior, ele adormecera rapidamente e uma avalanche de sonhos ruins conseguiu finalmente invadir sua mente enfadada.
Um deles consistia em Marlon sentado na mesa da biblioteca e Thierry tentando ensiná-lo uma coisa qualquer sem sucesso. Vez ou outra, Thierry olhava para o grande relógio da biblioteca, esperando que chegasse a hora de Marlon partir, mas os ponteiros pareciam girar no sentido contrário. As horas se distanciando cada vez mais do que deveriam ser.
O que mais preocupava Thierry naquele momento, porém, não eram os ponteiros que giravam erroneamente ou o fato de que Marlon jamais iria sair de sua casa, mas sim que o momento em que ele beijaria a ponta de seu nariz novamente jamais chegaria.
Thierry espremeu seu rosto contra o travesseiro. Não podia acreditar que tivera um sonho tão idiota em que um simples beijo o perturbava tanto, quando ele possuía muitas outras coisas com que preocupar-se.
O cada vez mais próximo dia do casamento de Violeta, por exemplo.
Bom, claro que o beijo também o preocupava, mas não do mesmo modo que no sonho.
A verdade era que nada mais lhe ocupava a cabeça sem que o fizesse lembrar de Marlon: a porta em que se despedira dele na tarde anterior, a sala da biblioteca abarrotada de papéis com sua caligrafia horrível, o olhar sonhador e apaixonado de Nicole para o nada, o livro lido por Violeta que tinha o mesmo título de um dos que Marlon trouxera em seu primeiro dia de aula... Tudo o perturbava, confundia. Ele não tinha mais certeza se gostaria ou não de ver Marlon novamente depois do ocorrido. Não gostava de sentimentos novos ou que alguém fosse capaz de causá-los nele. Por outro lado, sentimentos novos lhe causavam algo que nenhuma outra coisa era capaz: curiosidade.
- Thierry, abra a porta. Já passou da hora de irmos para a alfaiataria. Temos um cliente muito importante esperando por nós hoje.
- Estou com dor de cabeça, pai. Vou mais tarde. - disse ele com a voz abafada pelo travesseiro.
- Novamente? Todas as manhãs inventa uma desculpa para não cumprir com suas obrigações. Vamos. Já sei que não posso contar com você hoje à tarde por causa do Marlon.
- Lembre-se que a ideia de que eu o ensinasse partiu do senhor.
- E já me arrependo. Não pensei que ele demoraria tanto para aprender. Se depender de sua inteligência, perderá sua fortuna em poucos anos. Ainda bem que Marlon não parece nutrir qualquer sentimento por sua irmã. O que seria da vida de Nicole se casassem?
Thierry levantou da cama e arrastou pesadamente os seus pés até alcançar o baú onde guardava suas roupas.
- Ele não é tão ignorante quanto parece, pai. - falou, começando a vestir-se. - Sabe muito mais coisas do que a maioria das pessoas alfabetizadas que conheço.
- Por exemplo...? - quis saber o senhor Laforet.
- Cálculos matemáticos, história da região... - listou, tentando lembrar da "conversa" que tivera há algumas semanas com Marlon, onde este falou sobre sua vida inteira por insuportáveis vinte e sete minutos. Marlon contara sobre como ele fazia os cálculos de lucro e ganho do açougue de seu pai de cabeça e sempre lembrava o nome do cliente, o quanto este devia e se havia ou não quitado sua dívida.
- Tenho uma ótima memória. - vangloriou-se ele. - Meu pai também era assim antes de ficar doente. Ele me contou que uma vez...
Thierry apenas balançava a cabeça para cima e para baixo sem tirar os olhos de um livro do qual ele nem fazia ideia do que tratava. Apenas queria algo que o distraísse do tagarela ao seu lado. Ele detestava a voz grossa e suave de Marlon. Ela era tão insuportavelmente calma e tranquilizante. O som de um caco de vidro arranhando um espelho lhe seria mais agradável.
Mas, se detestava tanto Marlon, por que o defendia agora? "Marlon não é má pessoa." tentou explicar sua atitude para si mesmo. Mas... Desde quando ele se importava com as boas pessoas? Desde quando se importava se Marlon era ou não uma pessoa boa?
- De todo modo - falou, colocando os pés dentro de seus sapatos. -, fico feliz que o senhor e Nicole tenham desistido da ideia absurda de casá-la com ele.
Thierry abriu a porta do quarto e quase esbarrou em seu pai que havia estado praticamente encostado a ela.
- Eu posso até ter mudado de ideia, mas tenho para mim que Nicole ainda não superou a indiferença de Marlon. - disse senhor Laforet, taciturno.
- Nicole é sentimental demais. Ainda sonha em viver um romance como os das histórias da Violet. Ela irá superar. - Thierry tentou impedir que sua indiferença pelos sentimentos de sua irmã caçula ficasse explícita em sua voz.
- É... Eu sei.
Thierry pôde perceber que o pai estava tentando inutilmente parecer conformado por seu plano não ocorrer como o esperado. Deu para notar que ele ainda tinha esperanças de que Nicole pudesse arrumar um marido descente.
Os dois saíram da casa e caminharam pelo jardim em direção à estrada que os levaria à cidade, onde a alfaiataria da família se encontrava.
Pouco antes da morte da esposa, o senhor Laforet e os filhos costumavam morar no andar de cima da alfaiataria, porém, assim que a senhora Laforet faleceu, seu marido decidiu que estava na hora de deixar o trabalho artesanal de lado e investir em maquinaria industrial para produzir em larga escala. O senhor Laforet abria exceções apenas para seus filhos e para clientes que pagavam um bom valor extra para adquirirem peças exclusivas e bem finalizadas. O pai de Thierry insistia que o filho deveria aprender a comandar os empregados e a arte da costura, pois fora isto que o fizera prosperar.
Thierry, por outro lado, sempre fingia estar interessado no que o pai tinha a dizer, mas, em sua mente, arquitetava vários planos para vender os negócios do pai o mais rápido possível assim que este morresse.
E depois?
Bom, sobre o depois ele não sabia e com ele pouco se importava.
O depois era uma piada sem graça aos seus ouvidos cansados de gracejos.
- Senhores! - um dos criados do estábulo os chamou pouco antes de chegarem à estrada.
- Nada de cavalos hoje, Joseph. Meu filho irá comigo hoje. - explicou o senhor Laforet com um ar brincalhão. Ele adorava contar para quem quisesse ouvir que o filho nunca fora capaz de aprender equitação por ter medo de cavalos.
Thierry nunca se preocupou em explicar ao pai que não sentia medo de coisas tão fúteis quanto um cavalo. Ele simplesmente não acreditava que valeria à pena correr o risco de levar quedas e coices apenas para montar desconfortavelmente em um animal se uma carruagem era tão mais confortável e segura. Ele nem sequer saia muito de casa e, quando saía, não ia muito longe. Para quê? Não sentia curiosidade e conhecer novos lugares lhe era tão tedioso...
- Não é isso, senhor. - a pele de Joseph estava pálida e suada.
- Então o que é? - perguntou senhor Laforet.
- Eu... Os... No estábulo... - o criado parecia prestes a desmaiar e sua voz saía trêmula e falha.
- Fale logo! - ordenou Thierry. Joseph se espantou e conseguiu finalmente botar para fora o que o incomodava.
- Uma fera, senhor. - Thierry franziu as sobrancelhas para o criado, espalhando o pavor pelo seu corpo. Joseph tentou ser mais objetivo. - Uma fera atacou os animais.
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O Mundo Que As Sombras Escondem
FantasyO mundo está longe de ser como você imagina. Não significa que porque você nunca viu algo que ele necessariamente não exista. Sou a prova viva disso. Mas vamos ao que realmente interessa, pois esta história não se trata apenas de um mundo do q...