Sirène

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Marlon caminhava ao lado de Folha enquanto eles voltavam da Floresta escura. Raul estava logo atrás deles, carregando um saco de tecido pardo tão grande que parte dele se arrastava pelo chão.


- Ainda acha que é uma boa ideia levá-la à sua casa?


- Raul insistiu, o que posso fazer?


- Discordar, talvez?


- Ele é bem mais experiente do que eu neste tipo de coisa.


- Se com "experiente" subentende-se "já ter torturado várias sereias até a morte", concordo plenamente.


- Não permitirei que ele a mate.


- Mas permitirá que a torture?


Marlon não respondeu. Ele sabia do passado sombrio do pai como caçador de qualquer criatura que transgredisse o Acordo de Anonimato criado pelos bruxos. Os melhores lobisomens eram escolhidos para esta tarefa e tinham permissão para caçar, atacar e até mesmo matar todos os seres Anômalos que representassem alguma ameaça para o segredo que mantinha todos em segurança.


Há menos de uma semana, Marlon havia completado dezoito anos e passado pelo ritual pelo qual todo o lobisomem que completasse essa idade deveria passar: cortara o cabelo bem curto e fizera a barba pela primeira vez na vida diante de vários homens importantes da sua espécie. Todos os lobisomens tinham tanto o dever de defender os Normais dos Anômalos quanto os Anômalos deles mesmos, mas eram poucos os escolhidos como Caçadores.


Para ser um Caçador era necessário que o lobisomem fosse um Beta (lobisomem comum) ou um Alfa (lobisomem que havia nascido em um determinado estágio da lua). Nenhum Gama (lobisomem transformado através de uma mordida) era escolhido, pois possuíam variações de humor muito instáveis e imprevisíveis.


Raul era um Beta e Marlon, por falta de uma definição melhor, foi considerado um Alfa. Ele havia nascido durante um eclipse lunar e nenhum dos lobisomens mais velhos sabia o que isso poderia significar, mas sabiam que deveria ser algo grandioso. Tinham tanta certeza disso que logo Marlon foi escolhido para ser um Caçador. Ele pensou em recusar a oferta. Nunca se imaginou saindo a procura de conflitos para apaziguar, mas a expressão de orgulho de Raul o fez desistir da ideia. Falar sobre o passado como Caçador sempre trazia algum lampejo de consciência ao seu velho pai e Marlon não estava disposto a jogar esta oportunidade de mais tempo com o verdadeiro Raul no lixo.


Enquanto carregava o corpo da sereia adormecido por um feitiço e escondido dentro do saco para não levantar grandes suspeitas caso alguém os visse, Raul parecia lúcido como há muito tempo seu filho não o via. A determinação estava incrustada em seu olhar sério.


Juliet vinha caminhando sem qualquer pressa atrás deles. Folha, a pedido de Marlon, havia tido uma conversa com ela e a convencera a ajudá-los, mas ela parecia recusar-se a chegar mais perto de Marlon do que o necessário. Parecia bastante magoada.


- Soube o que ela me pediu? - ele cochichou para Folha mesmo sabendo que Juliet não era capaz de ouvi-los.


- Ela contou. Sei que não devo intrometer-me nisso, mas permita que eu diga que fez bem em recusar. A última coisa de que Juliet precisa é de falsas esperanças.


- Às vezes eu penso que poderia até ter aceitado a oferta se não fosse por... Você sabe. - ele deu de ombros.


- Beijá-la por pena? Isso seria ainda mais cruel que recusá-la.


- Não estou tão certo se Juliet concorda com você.


Ao chegarem a casa, Raul tirou a sereia de dentro do saco e a colocou em uma cadeira no centro da sala. Juliet fez com que cordas resistentes surgissem em seus pulsos e pernas (a calda havia sumido pouco depois que a tiraram do lago), prendendo-a a cadeira.


Com um estalar de dedos de Juliet, a sereia acordou. Ela parecia um pouco confusa, contudo, sorriu ao ver as quatro pessoas diante dela e as várias cicatrizes em seu rosto se contraíram de modo grotesco.


- Ora, ora. O que temos aqui? Vocês todos são Anômalos, não são? - perguntou com uma voz extremamente infantilizada. - Que grande variedade para quem foi obrigada a ver caras feias e enrugadas de vampiros todas as noites. A que devo a honra?


Marlon franziu o cenho. Ela não parecia estar sendo sarcástica.


- NÃO ME VENHA COM SUA LÁBIA TRAIÇOEIRA, CRIATURA MALDITA. - berrou Raul de repente, quase fazendo Marlon, Folha e Juliet caírem para trás com o susto. - SABE MUITO BEM DO QUE FALAMOS.


A sereia fitou-o com ar inocente.


- Para ser sincera, não, mas estou certa em pensar que um de vocês dois foi o lobisomem que me atacou no lago?


- Fui eu. - respondeu Marlon sentindo-se culpado pelo estado em que a havia deixado. Aquelas marcas profundas, provavelmente, jamais sairiam do rosto ou do corpo dela.


- Então acho que deve ter algo a ver com o belíssimo lanchinho que me escapou por sua causa. - ela sorriu como se houvesse acabado de contar uma piada.


- COMO OUSA RIR APÓS QUASE ACABAR COM A VIDA DE UMA PESSOA? NÃO VÊ QUE ESTÁ EM DESVANTAGEM ENTRE NÓS, CRIATURA MALDITA? - Raul gritou tanto que Marlon ficou com medo que o pai tivesse um ataque cardíaco. Ao que parecia, Raul não havia realmente voltado à completa sanidade.


- Estava faminta. - retrucou a sereia que, apesar de seu jeito infantil, não parecia nem um pouco assustada com Raul.


Com o canto do olho, Marlon viu Juliet lançar um feitiço qualquer.


- O que está fazendo? - ele perguntou.


Juliet o ignorou. Folha repetiu a pergunta de Marlon.


- Estou lançando um feitiço silenciador para que ninguém fora desta sala possa escutar o que se passa aqui dentro.


- Impressionante. - elogiou Marlon, tentando fazer com que Juliet ao menos olhasse para ele. Ela fingiu não ouvi-lo.


- Vou dar-lhe duas opções, criatura maldita. - rugiu Raul. - Ou você desfaz o encantamento que lançou naquele rapaz por bem ou a farei tirar por mal. Acredito que já tenha ouvido falar o que acontece a quem fica diante de um lobisomem em plena transformação.


- Não. Nunca ouvi. O que acontece?


- Digamos que é uma cena bastante assustadora e traumatizante. - respondeu o pai de Marlon para logo complementar com: - Criatura maldita.


Folha aproximou-se do ouvido de Marlon.


- Deve interferir antes que seu pai mate esta mulher.


- Como posso ser mais eficiente que uma enxurrada de ameaças?


- Pense, Marlon. Qual é o maior ponto fraco de uma sereia?


- O seu... - Marlon interrompeu-se ao olhar para o corpo completamente despido da sereia. Constatou imediatamente que ela parecia um pouco acima do peso. Nada esquelética como a maioria das sereias que ele já vira. - É isso!


- Parece uma experiência interessante. Acho que optarei pela segunda opção. O amigo de vocês é o primeiro homem que entra na Floresta Escura em meses. Não posso simplesmente perdê-lo assim. - respondeu a impassível sereia.


Raul começou a contorcer-se de raiva. Marlon segurou os ombros do pai antes que ele saísse quebrando os móveis da sala.


- Pai, por que o senhor não deixa que eu cuide disso? Agora também sou um caçador, lembra?


- Mas eu devo fazer tudo dentro de meu alcance, Marlon. E se o filho do alfaiate vier atrás de mim por eu não tê-lo ajudado a escapar dela? - a expressão de Raul passou de raiva para pânico em poucos segundos. Marlon não entendia como alguém com o passado dele poderia sentir tanto medo de Thierry.


- Ele não virá. Palavra.


- Certo, certo. Mas não se esqueça de chamá-la de criatura maldita. É muito importante.


- Não vou esquecer, pai. Folha, você poderia levar-lo até o quarto?


Folha saiu arrastando o Raul pelo braço, deixando Marlon sozinho na sala com Juliet e a sereia.


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