Thierry estava sentado ao lado de Marlon, em cima de uma das rochas ao redor do lago. Ele ainda estava incomodado com o calor, mas Marlon insistira para que eles ficassem sentados na rocha mais iluminada pelo sol. Alguma coisa idiota sobre o calor fazer bem para a digestão.
O saco estava repleto de sanduíches, biscoitos, frutas e fatias de bolo, além de uma toalha que Marlon estendera sobre a rocha quente. O gosto da comida era muito bom e algo nas pequenas ondas que se formavam na água depois de um sopro forte do vento trazia uma coisa muito parecida com tranquilidade para Thierry. Ele pegou-se pensando que aquele dia teria tudo para ser agradável se Marlon não estivesse ao seu lado.
O seu ódio por ele já havia cessado há muito tempo. O que o fazia querer manter distância dele agora era uma espécie de desconforto. Talvez um pouco de vergonha também. Era incompreensível para Thierry a capacidade de Marlon de ignorar facilmente o que acontecera entre eles. Tudo bem que o próprio Thierry pedira isso, mas não pensou que Marlon fosse cumprir a promessa com tanta facilidade.
- É um lugar bonito, não é? – perguntou Marlon, mordendo um pedaço de bolo.
- Acho que sim. – foi tudo o que ele recebeu como resposta.
- Eu costumava vir aqui com meu pai quando era pequeno. Meu tio sempre nos chamava para cá no verão.
- Uhum. – Thierry estava com os olhos fixos nas ondulações do lago, ignorando as palavras de Marlon.
- O senhor não gosta de mim, não é? – perguntou Marlon depois de um tempo remoendo a quietude. – Quer dizer... O senhor não gosta mesmo de mim.
Thierry não respondeu. Ainda fitava o lago com total concentração, tentando ignorar o que Marlon dizia.
- Não precisa confirmar. Eu sei que é verdade. E pensar que eu acreditei que... – ele suspirou. – Não importa agora. Nem para mim e nem para o senhor, muito menos.
Mais silêncio.
- Não vou mais tentar qualquer coisa contra o senhor. Nada de flores, toques ou... Beijos. – Marlon abraçou os joelhos e apoiou o queixo neles. – Agradeço o tempo que o senhor dedicou para ensinar-me a ler e a escrever. Acredito que eu já saiba o suficiente a ponto de poder deixá-lo em paz.
Marlon esperou que Thierry dissesse alguma coisa. Qualquer coisa. Mas a rocha sob os seus pés lhe parecia uma ouvinte mais dedicada que a pessoa à sua frente.
- Já está ficando tarde. Vou procurar o cavalo. – disse ele, batendo as mãos na calça para limpar a sujeira. – Poderia guardar o resto de comida no saco, por favor?
Thierry virou a tempo de ver Marlon sair atrás do cavalo. Com uma rápida olhada em volta, ele percebeu que o animal não estava mais preso à árvore bem à frente deles como Marlon o deixara. Não se preocupou. Eles iriam voltar a pé de todo modo. Menos um atraso.
Começou, então, a recolher o que sobrara da comida. Ele havia se esforçado para ignorar as palavras de Marlon, mas agora elas giravam na sua cabeça. Ele deveria estar satisfeito, não deveria? Finalmente se veria livre dele e poderia voltar à sua rotina monótona.
Então, era isso.
Marlon sumiria de sua vida de uma vez por todas.
Nada daqueles embrulhos no estômago.
Nada daquele calor pelo corpo.
Nada daquela falta de ar.
Nada daquele coração acelerado.
Nada de Marlon.
O pensamento o causou náuseas. Toda a comida que ele havia ingerido há poucos minutos ameaçava fazer o caminho contrário pela sua garganta. Ele correu até o lago e usou a mão em concha para conseguir pegar um pouco de água para beber.
A água do lago era pura e refrescante mesmo depois de castigada pelo sol forte. Thierry aproveitou para lavar o rosto e passar um pouco dela em sua nuca para diminuir o calor.
Foi quando a música começou.
Era uma música suave e a voz que a cantava era incrivelmente bela.
Bela e tão familiar quanto a melodia da música.
Thierry lembrou-se de sua mãe, com aquela mesma voz, cantando aquela mesma música para ele, Nicole e Violeta. Todas as noites antes de dormir, a família se reunia na sala e escutava a senhora Laforet cantar uma das músicas que conhecia. Thierry recordou desta especificamente, porque ele mesmo insistia para que a mãe a cantasse todas as noites. Ele detestava as que suas irmãs pediam. Eram suaves demais para ele.
A senhora Laforet sempre cantava a música desejada pela maioria e, quando ia ao quarto de Thierry para colocá-lo para dormir, cantarolava algumas das notas da sua música favorita em seu ouvido. Ela cantarolara aquela mesma música para ele na noite de sua morte.
Durante muito tempo, aquelas poucas notas cantaroladas eram tudo o que Thierry sabia da música. Ele nunca mais foi capaz de ouvir a música novamente, por isso, nunca aprendeu a letra, mas tinha certeza de que não era a que ouvia agora.Venha, pequena criança.
Faz frio aí fora.
Sou sua fonte de esperança.
Tudo que tem agora.Venha, meu jovem rapaz.
Não me deixe aqui sozinha,
Pois sua alma não terá paz
Se não encontrar-se com a minha.Venha, homem valente
Provar de meu sabor.
Sou o elixir condolente
Que aliviará sua dor.Thierry estreitou os olhos e localizou no centro do lago uma figura feminina de costas. A pele dela era pálida e os cabelos dela, compridos e negros como carvão.
Como os de Violeta.
Como os de sua mãe.
A mulher virou para ele e Thierry ficou sobressaltado ao perceber que as semelhanças da mulher com a senhora Laforet não se restringiam apenas aos cabelos. Os olhos, o nariz, a boca... Eram tão condizentes com a realidade que, por um momento, Thierry chegou a acreditar que estava diante da mãe.
Mas era impossível. Ela estava morta, certo?
Certo?
Ele tentou afastar-se daquela alucinação. Onde estava Marlon com aquele maldito cavalo? Ele queria sair dali o mais rápido possível, mas os seus pés só levantavam do chão para caminharem em direção à mulher. Todos os seus sentidos estavam voltados para ela contra a sua vontade. Era incapaz de chamar por ajuda. Sua língua estava presa no céu da boca.
Quanto mais ele caminhava, mais fundo o lago ia ficando. A água alcançou primeiro os seus pés e depois os tornozelos, os joelhos, as coxas o quadril até, finalmente, ficar na altura de seu peito quando ele ficou de frente com a desconhecida de rosto familiar.
A sua mãe, ou melhor, a mulher que parecia com sua mãe parou de cantar, estendeu os braços e segurou o rosto de Thierry com as duas mãos. Seus lábios se ergueram sutilmente em um sorriso doce e Thierry notou o sinal quase imperceptível que ela possuía embaixo do olho direito. Ele e as irmãs também tinham aquele sinal. Os três o haviam herdado da mãe.
As mãos delicadas em suas bochechas deslizaram suavemente pelo seu rosto e pescoço até se apoiarem em seu ombro de modo acolhedor.
Tudo aconteceu em poucos segundos.
Os olhos e cabelos da mulher começaram a mudar de cor, deixando-a cada vez menos parecida com a falecida senhora Laforet. O sinal de nascença desapareceu e os dentes dela cresceram e se projetaram para frente em forma de agulhas afiadas. O chão aos pés de Thierry sumiu ao mesmo tempo em que as mãos que seguravam seu ombro o empurraram para baixo d’água.
A criatura continuou a se transformar após submergir junto com ele, mas Thierry não lhe deu a menor atenção. Aproveitou o momento em que o aperto em seus ombros diminuiu para nadar de volta à superfície.
O esforço de nadar para cima foi ainda maior do que o normal, pois a própria água parecia insistir em puxá-lo para baixo e, quando finalmente pareceu que conseguiria sair da água, suas mãos tocaram em algo sólido. Era como se, durante aquele curto período, a água da superfície houvesse congelado com ele dentro, formando uma película resistente e intransponível.
Thierry esmurrou a parede transparente, mas nada parecia dar resultado. Cada esforço que fazia o deixava ainda mais fraco e carente de oxigênio. Seus pulmões queimavam, clamando por um pouco de ar.
Uma mão agarrou seu tornozelo e o puxou. Thierry sacudiu as pernas para livrar-se da criatura que, apesar de incrivelmente forte, o soltou e nadou até que eles ficassem um de frente para o outro.
A mulher diante de seus olhos tinha cabelos castanhos compridos e enormes olhos completamente tomados pela cor preta com um risco branco no centro, como nos olhos de um gato. A boca dela ainda estava cheia de dentes pontiagudos e ela estava nua apenas da cintura para cima, pois no lugar de suas pernas havia uma enorme causa escamosa.
Thierry hesitou por um momento ao se deparar com a visão macabra. Foi o suficiente para que a criatura girasse seu corpo e colidisse a sua cauda pesada contra o peito dele, expulsando todo o ar que mantinha seu corpo consciente.
Ele apenas teve tempo de ver um animal indistinto entrar na água e investir contra a criatura que o atacava antes de tudo ficar escuro.
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O Mundo Que As Sombras Escondem
FantasyO mundo está longe de ser como você imagina. Não significa que porque você nunca viu algo que ele necessariamente não exista. Sou a prova viva disso. Mas vamos ao que realmente interessa, pois esta história não se trata apenas de um mundo do q...