Allongé Sur Le Lit de La Mort

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Thierry cuspiu a massa asquerosa que a planta se transformara em sua boca e esperou sentado pela ameaça. Pensou em correr como Horizonte sugerira, mas estava tão desorientado dentro daquele círculo de árvores que era mais provável que acabasse correndo em direção aos braços do inimigo. Nem sequer conseguia lembrar-se do caminho tomado pela moça ou distinguir de onde o som ameaçador saíra.
Sem saber ao certo o porquê, Thierry resolveu que seria uma ótima ideia deitar na grama e observar o céu azul e os desenhos das nuvens.
Um pássaro...
Um porco...
Um urso...
Um cavalo...
Thierry fechou os olhos e balançou enfaticamente a cabeça de um lado para o outro como se aquilo pudesse apagar a imagem do cavalo. Detestava cavalos. Não queria ver um cavalo.
Voltou a abrir os olhos e, para o seu desgosto, percebeu que todos os outros animais haviam sumido, menos o cavalo. A nuvem que o formava começou a assumir um tom cinza e os traços do equino foram ficando cada vez mais realísticos e cada vez mais parecidos com o cavalo de Marlon ao qual Thierry não se dera ao trabalho de decorar o nome.
Com um relinchar alto, o animal evocou uma chuva forte e um poderoso trovão. O céu foi tomado de azul escuro e as árvores que cercavam Thierry começaram a se fechar ao seu redor. A chuva continuava a cair, mas todas as gotas parecia se acumular sobre uma parede de vidro pouco acima de Thierry.
As árvores que o cercavam estavam cada vez mais próximas.
O cavalo relinchava mais alto que os trovões que pareciam chamar-lo pelo nome.
A chuva caía forte sobre a parede de vidro que começava a rachar...
Um novo rosnado fez com que Thierry abrisse os olhos. Ele estivera sonhando? Como, se não lembrava de ter caído no sono? Há quanto tempo alucinara, deitado no chão enquanto Sei-Lá-Quem se aproximava?
Enraiveceu-se com a própria desgraça. Mastigara uma espécie de erva alucinógena para cura-se e acabaria sendo morto por causa dela. Grande ironia!
Era verdade que ele já não mais sentia a dor na cabeça, mas, em compensação, também não sentia a língua, as pernas, os braços e sequer conseguia mexer o corpo.
Foi com muito custo que conseguiu sentar-se. Sua cabeça e seu corpo pesavam para frente, implorando para voltarem ao conforto da grama macia. Thierry esforçou-se, inutilmente, em manter os olhos abertos. Um cansaço poderoso tirou-lhe as rédeas do controle de seu corpo.
Encostou as costas em uma árvore tentando evitar cair com o rosto no chão. Todas as suas tentativas de levantar foram falhas. Fora derrotado por uma mera planta. Por que dera ouvidos a uma desconhecida louca?
Um outro rosnado seguido por um uivo indicaram a Thierry que a fera não estava muito longe. Fera. Talvez este fosse o animal que tanto assustava Joseph. "Contaram-me que, em cidades do interior, muitas pessoas têm sido mordidas por estas bestas também. Ninguém está seguro." Não fora isso que ele dissera?
Thierry lembrou-se da lógica dedutiva que aprendera na escola:

Thierry é uma pessoa em uma cidade do interior.
Pessoas do interior têm sido mortas pela fera.
Portanto, Thierry será morto pela fera.

Um simples, porém belo raciocínio, não?
Thierry sentiu a presença de alguém a sua frente e forçou seus olhos a abrirem até finalmente distinguir um homem de roupas largas, sujas e rasgadas parado em pé diante dele.
- Então foi você que matou o meu vampiro? - disse ele.
- Vamp... Iro? - sua língua dormente e sua mente confusa impediram Thierry de formar uma frase com mais sentido.
- Sabe o esforço que tive para encontrar um Primário distante do bando? Quis divertir-se à custa do meu trabalho duro?
Thierry sentiu uma mão envolver seu pescoço e apertá-lo até que sua respiração ficasse penosa.
- Ou, por acaso, seria você um daqueles Normais loucos e alienados que se auto-intitulam caçadores de vampiros? - o homem riu e o rosto de Thierry contraiu levemente em repulsa ao entrar em contato com seu hálito quente. - É patético. - e largou o pescoço dele com um gesto brusco.
A última palavra fez com que Thierry abrisse os olhos. Quem aquele homem pensava ser para ousar chamá-lo de patético?
- Mas nem tudo está perdido, afinal. - o desconhecido sorriu de um modo ameaçadoramente insano. - Posso divertir-me arrancando um membro seu por dia até que pague devidamente pelo que fez. Talvez não dure tanto quanto o Primário, mas terá que servir.
O corpo de Thierry enrijeceu quando o rosto rústico e barbado do Homem Fera começou a deformar-se. Pelos surgiram por todo seu corpo, sua boca e seu nariz se projetaram para frente formando um focinho com dentes afiados e as orelhas cresceram pontudas para cima enquanto a coluna dele entortava formando uma corcunda.
O homem se transformara na mistura perfeita (se é que pode chamar-se assim) entre um ser humano e um lobo. A cena por si só já era bastante assustadora, mas existia algo de amedrontador nela que ia muito além da aparência da criatura. Olhá-la nos olhos despertava em Thierry um medo intenso e irracional. Ela o fazia reviver os momentos mais terríveis e assustadores da sua vida...

Thierry acordou de manhã com a cozinheira de sua casa balançando seu ombro. Ele levantou rápido para impedir que ela continuasse a tocá-lo. Detestava que outras pessoas o tocassem sem sua permissão.
A cozinheira, com lágrimas nos olhos, pediu que ele a acompanhasse até o quarto das suas irmãs. Ela disse que logo o seu pai iria vê-los.
Thierry, relutante, acompanhou a mulher.
Ele escutou barulhos de vozes masculinas abafadas pela porta fechada do quarto de seus pais.
Thierry engoliu em seco ao lembrar-se do que a porta escondia: o corpo sem vida de sua mãe.
A cozinheira tentou segurá-lo, mas ele, um garoto de doze anos, era muito mais rápido e ágil que ela, uma mulher de quase sessenta. Breves memórias do corpo de sua mãe estirado sobre a cama onde dormia com os olhos e a boca abertos, contemplando o teto com um espanto assombroso invadiam sua mente a cada batida violenta que ele dava na porta.
Finalmente, o médico de sua família abriu a porta para ver quem batia. Thierry passou por baixo do seu braço estendido antes que o doutor tivesse a oportunidade de voltar a fechar a porta.
O senhor Laforet parou diante do filho, obstruindo sua visão do corpo, e o abraçou com força.
- Sinto muito, filho. Não há nada que possamos fazer. Ele está morto. - disse.
Ele?
Thierry olhou por cima do ombro de seu pai e percebeu, com espanto que não era o corpo de sua mãe sobre a cama.
Era o de Marlon.

A visão durou apenas o tempo da transformação do homem em fera, mas a sensação de ver Marlon morto ainda persistia como no primeiro segundo. Um choque arrepiante e doloroso.
O terror fez com que um pulso de adrenalina se espalhasse pelo corpo de Thierry, anulando boa parte do efeito sedativo da planta.
Sem pensar duas vezes, Thierry se levantou e fugiu correndo para o meio da floresta.
Os galhos das árvores estavam muito próximos e isso dificultada consideravelmente sua fuga enquanto a fera parecia ganhar proximidade rapidamente.
Thierry concluiu que, já que não poderia ser o mais rápido dos dois, seria o mais esperto e não demorou muito até que ele finalmente esbarrasse com uma das árvores gigantescas, de tronco largo e escuro que avistara enquanto seguia Horizonte.
Ainda incerto quanto ao nível de fragilidade de seu plano, Thierry parou em frente à árvore e esperou. O seu coração saltava no peito. Estava prestes a ganhar mais uma grande oportunidade de escapar ou a acabar com tudo de uma vez por todas.
Estava tudo nas mãos da fera.
Logo a avistou correndo ferozmente em sua direção em alta velocidade. Se ele tivesse sorte, a ira e o desejo por morte cegaria a fera tempo o suficiente para que ela não percebesse a árvore atrás dele.
Ela não percebeu.
Quando a fera se encontrava a uma distância absurdamente curta de Thierry, este se jogou para o lado fazendo com que ela colidisse com a árvore com toda força.
A criatura uivou de raiva enquanto Thierry ganhava distância. Ele já se encontrava consideravelmente longe quando ouviu uma espécie de ganido de dor. Ou a fera realmente se machucara ou encontrara um oponente à altura. Não importava. A única coisa que Thierry queria era sair daquele lugar e torcer para que Marlon conseguisse fazer o mesmo.
Um cipó esticado no chão passou despercebido por Thierry até fazê-lo tropeçar. Era estranho, pois ele estava certo de que teria percebido um cipó daquele tamanho. Era com se ele tivesse surgido magicamente.
Talvez tivesse.
- Você conseguiu fugir dele. - ele reconheceu a voz macia de Horizonte atrás de si.
- Não seja modesta. A senhorita foi muito mais eficiente do que eu. - ironizou com amargura. Ela poderia ter ao menos explicado os efeitos colaterais da planta antes de sair correndo.
- Obrigada. - ela sorriu, sem notar a ironia. Thierry olhou para trás e percebeu que ela amassava algo em sua mão. Parecia uma folha seca. Ao perceber isso, Horizonte também olhou para própria mão. - Tenho que devolver você ao seu mundo Normal. - disse ela como se isso explicasse tudo. - É uma pena, porque gostei de você. Acho que daríamos bons amigos.
- Não estou tão certo quanto a isso. - disse ele sem tirar os olhos da mão dela.
Horizonte sorriu e abriu a mão, revelando o conteúdo.
- Ainda nos veremos novamente, Thierry. Sei disso. - disse ela antes de soprar o pó de folha seca sobre o rosto dele.
E tudo ficou escuro.

O Mundo Que As Sombras EscondemOnde histórias criam vida. Descubra agora