Danielle Riggs, 2004.
Ser nova na escola é a pior coisa do mundo. Meu pai é um militar e isso faz com que eu me mude constantemente. A maioria das pessoas acha este tipo de vida extremamente excitante. Mas quando você é uma garota de 15 anos, tímida e retraída, que não faz amigos facilmente, acaba sendo bem ruim passar um ano em cada cidade.
Entro na sala tentando saber se realmente descobri onde vai ser a aula de literatura ou se errei minha localização pela terceira vez. Leio o nome do professor na placa de identificação. Perfeito, combina direitinho com o nome no papel que recebi no dia da orientação. Ignoro os olhares inquisidores direcionados a mim e procuro um lugar para sentar. Com a cabeça baixa, lógico.
Sinto um rubor nas bochechas quando percebo que, apesar dos meus melhores esforços para não ser notada, mais ou menos uns dez adolescentes ainda me olham insistentemente. Estou fortemente inclinada a sair correndo, mas o professor fecha a porta.
– Danielle Riggs? – o professor me olha e sou obrigada a olhar pra cima. – Seja bem vinda.
Balanço a cabeça em agradecimento e ele começa a aula. Escuto alguns cochichos e tento desviar minha atenção ao livro na minha frente.
Conforme os dias passam, os cochichos aumentam. Poucas pessoas são realmente legais comigo. Não é que eu já não esteja acostumada, passei por estas situações tantas vezes que aprendi a lidar internamente com elas, sem que dominem tanto as minhas emoções. Mas é claro que quando você vira alvo de crueldade, por melhor que saiba lidar com seus sentimentos, ainda sobra um resíduo de dúvida na sua autoconfiança.
Sempre fui gorda. Pode dizer a palavra, viu?! Acho que ser chamada de 'fofinha' e 'grande' é um insulto. Minha questão com o peso vem de muito cedo. Herdei um comportamento meio compulsivo por regimes da minha mãe. Desde que eu me conheço por gente ela vive em dietas, odiando seu corpo, evitando espelhos e dizendo que as roupas não lhe servem ou, quando servem, não caem bem.
Eu aprendi tudo isso, reproduzindo um comportamento obsessivo pela balança e pelo espelho. Irônico é que na verdade eu nunca fui magra. Nem quando criança. Isso me faz pensar que corro atrás de um objetivo tão impossível quanto voar.
Então eu vivo controlando o que como, ciente de que eu posso passar fome por dias sem conseguir perder nenhum centímetro de medida na cintura ou no quadril. Mas não pense que eu realmente passo dias sem comer. Disse isso em forma figurativa.
Por incrível que pareça, uma das pessoas mais legais comigo é Clara. Ela é uma garota divertida e completamente linda. Seus olhos são de um azul brilhante e vivo, o rosto é anguloso e delicado, exceto pela boca que é um tanto maior do que deveria para harmonizar com o resto do rosto.
Clara é líder de torcida, oradora da turma, presidente do clube de política, escreve para o jornal da escola e ainda tem tempo de namorar Elton. Se você imaginou que ele é um ser maravilhosamente esculpido pelas próprias mãos de Deus, acertou.
Eles são um casal tão incrível que Angelina e Brad teriam inveja. Bom, pode ser que eu tenha uma tendência ao exagero falando isso. Mas releve, por favor. Eu sou inteira exagerada, do humor ao tipo físico, exagerada na timidez e na introspecção. Mas estas duas últimas são uma autodefesa. Quanto menos as pessoas me conhecerem, menos oportunidades vão ter de me atingir.
Enfim. Eu sou um ovo. Redonda, com uma casca dura e um interior mole. Mas você precisa me quebrar pra descobrir esse interior.
Foi justamente o que Clara fez.
Em poucos meses nos tornamos amigas. Uma amizade bem improvável, diga-se de passagem. Mas foi a melhor coisa daquele ano do meu colegial. Eu não tinha o mesmo tipo de relacionamento com Elton ou os outros amigos de Clara. Eles eram pessoas diferentes, alguns eram os que teciam piadinhas maldosas sobre mim, e eu realmente não tinha nenhuma intenção de conviver com eles. Obviamente Clara me defendia. Mas vocês podem imaginar que não era o suficiente.
Eu olho as araras de vestidos atentamente. Apesar de ver alguns tamanhos que me servem, não me imagino usando nenhum deles no baile de primavera da escola.
– Dany, você precisa provar este. – Clara puxa um vestido verde no cabide e me mostra. – Vai ficar lindo com a cor da sua pele.
– Ah, Clara, sério? – falo desanimada olhando o tecido em sua mão comprida e delicada. – Por favor não me faça entrar dentro desses vestidos.
Ela me dá um olhar furioso. Clara odeia quando eu me encho de auto piedade. Ela sempre me diz que sou linda, que preciso melhorar minha autoestima, e não meu corpo. Mas é bem difícil pra mim. Uma garota bonita como Clara realmente não tem como entender isso.
Tento competir com ela na troca de olhares. Mas bufo e puxo o vestido para fora da arara, pisando duro em direção ao provador.
Tudo bem, eu tenho quadril largo bonito. Gosto dessa parte de mim, com uma bunda grande dessas eu chego até a ter cintura, apesar dos pneuzinhos da frente e na lateral da minha barriga. Meus seios também são grandes. Eu não me acho feia. Juro.
Tenho um rosto bonito. Mas o pior pra uma gorda é escutar justamente isso. 'Você tem um rosto tão bonito.'.
Só o rosto, viu?!
O corpo é uma merda.
Não né? Ou me chama de bonita (e eu dificilmente vou acreditar, como faço com Clara), ou não fala nada. Mas não me diga que o meu rosto é bonito. O que isso quer dizer? Que pra uma gorda eu tenho o rosto bonito? Isso me coloca numa categoria diferente de gordas? Será que os gordos são classificados pelos rostos já que os corpos são marginalizados mesmo?
Entendeu a complexidade?
No fundo somos todos pessoas. Mas é bem estressante ser uma pessoa fora do padrão.
Bem, eu digo tudo isso, mas lembre-se que ninguém é bem resolvido aos 15 anos. Clara tem inseguranças absurdas. E eu vivo tentando convencê-la de sua perfeição. De algum modo, ela faz o mesmo por mim.
– Ficou lindo! – Clara fica sorridente ao abrir a cortina do provador e me olhar fantasiada de papagaio com aquele tom verde de tafetá. Reviro os olhos e me encontro novamente no espelho com ela parada atrás de mim.
– Nem sei por que estou provando isso. Não vou ao baile. – digo bem decidida a assistir uma maratona de Twin Peaks no sábado à noite.
– Ah, Dany! Eu preciso de você lá. – ela pede colocando as mãos no meu ombro e encontrando os olhos com os meus no espelho.
– Pra que? O Elton vai estar com você. E eu nem tenho um par. É muito deprimente. – digo fazendo uma careta e mexendo os braços como uma forma de gesticular o meu "Pra que?". Minha pulseira enrosca no tecido mais fino da saia do vestido. – Ah meu Deus, Clara. Me ajuda.
– Calma. – ela se coloca ao meu lado e começa a desenroscar o berloque do tecido.
– Só me falta estragar o papagaio e ter que comprar. Eu vou assistir o Dale Cooper em traje de gala. – reclamo. É bem o meu jeito desastrado de fazer as coisas mesmo, nem me surpreendo mais.
– Pare de se mexer, Danielle! – ela diz começando a rir. – Você consegue cada coisa. Eu adoro isso em você.
Eu rio com ela, com o braço imóvel e preso à mão de Clara e ao tecido. Ela consegue me libertar e endireita o corpo. Estamos ainda rindo quando Clara tomba o corpo para frente e me segura pela lateral da cabeça. Eu ainda tenho tempo de arregalar os olhos antes que ela finalmente me beije na boca.
Clara é perfeita em tudo que faz. Inclusive beijando.
Ela teve muito mais treino do que eu. Muito mesmo. Eu só beijei dois caras até hoje e nem foi lá grande coisa. Mas Clara me beija delicadamente, mexendo os dedos entre meu cabelo e sinto uma excitação diferente e instigante. Meu corpo fica meio amortecido e eu não quero parar. Apesar de não saber exatamente o que significa estar cruzando a minha língua com a da minha melhor amiga.
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Peculiar
Short StoryDanielle é peculiar. Com a ajuda de Clara, sua amiga da adolescência, ela se tornou destemida, encarando de frente os desafios de sua vida e a incansável luta de ser uma mulher fora dos padrões. Ela prefere ser chamada de gorda mesmo. Por que? Porqu...