A noite se foi e deu lugar ao dia. Pela janela do quarto observei a mudança gradual das cores celeste, o brilho pálido das estrelas que pontilhavam o véu substituído pela aurora de cada amanhecer.Não dormi nada. Passei a noite inteira em claro, o cérebro rodando a mil por hora, fundindo-se num emaranhado de incógnitas deturpadas. O meu maior pesadelo fora encarnado e estava ali comigo, rindo escroto da minha cara. Ela ia morrer.
Alma ainda dormia, o rosto apoiado sobre o tecido amassado da minha camisa. Ela vai ficar com duas ou três marcas de botões na bochecha quando acordar. Eu não parava de deslizar suavemente os dedos pelos fios negros de cabelo dela, espalhados sobre as costas brancas, macia e lisa.
— Fica comigo. — supliquei para o inconsciente. Isso é tudo o que eu peço. Pago o preço que for. Qualquer um. Só devolva-a para mim.
Posso viver sem quase tudo, só não posso viver sem ela. Ela é a única exceção, o único item indispensável à minha sobrevivência. Alma tinha dito que responderia a tudo o que eu quisesse saber pela manhã, mas isso importava de verdade? Como as coisas aconteceram? O que ela fez não podia ser desfeito e eu não podia assumir o lugar dela, só isso importa de verdade. A minha menina estava morrendo e eu não podia fazer nada para impedir. Eu vou ficar completamente louco.
Alma inspirou profundamente e se espreguiçou. Dois olhos um pouco inchados e borrados se abriram ligeiramente para mim. Ela não tinha lavado o rosto depois de chorar, nem tirado a maquiagem ontem. Tinha adormecido aninhada no meu colo, num sono tão tranquilo e suave que me fazia perguntar se eu estava tendo um pesadelo quando vi a ausência da marca dela.
— Estranho e lindo de morrer! — um sorriso de anjo perfeito apareceu na boca para me dar bom dia.
Ali estão, as duas marcas que os botões da minha camisa fizeram no rosto dela.
— Bom dia, carissimi. — toquei os pontos fundos feitos recentemente em sua bochecha. — Dormiu bem?
— Mas é claro! — ela se sentou e me deu um beijo, depois desabotoou o primeiro botão da minha camisa. — Você é muito gostoso, sabia?
Ai, ai, ai. Estamos entrando num terreno perigoso. Aqueles dedos passeando preguiçosamente pela minha pele, me levando para outra direção. Ela está fugindo da conversa.
— Você me deve algumas respostas. — declarei sem interromper sua ação.
— Direto e reto! — ela fez aquela cara feia que sempre fazia quando tentava me repreender.
— Você prometeu. Tudo o que eu quisesse saber pela manhã.
— Mas não disse que seria a primeira coisa que eu faria. — a moça jogou todo o cabelo negro para o lado, deixando uma quantidade grande demais da tela em branco para ser apreciada. Faltava um lindo desenho de rosa dos ventos sobre aquela barriga branca e lisa.
— Você não vai me enrolar para sempre. Então desembucha!
— Tá bom! — Alma revirou os olhos e suspirou rindo. — Mas essa situação não está correta, então primeiro vamos manter o foco em você.
— Em mim? Por quê?
— Estou me sentindo em ligeira desvantagem aqui. Sei que não tenho um par de asas mas... não acha que devemos restaurar o equilíbrio aqui desfeito? — uma lembrança. A jovem me parafraseou. Em outra vida, eu dissera essas palavras para ela, sugerindo que se livrasse de um pouco do tecido que a cobria. — Sugiro que comece pela camisa. — o sorriso que me matava apareceu com tudo.
Eu a observei de cima a baixo. Agora sim, com bastante atenção. Ela não tinha tido tempo de se vestir. Uma beleza plena, rara e gloriosa, com muito pouco tecido compondo aquela aquarela. Um sutiã e um short. Economizando o meu trabalho, beleza exótica? Assim é jogo sujo! A dama não corou sob o meu olhar de escrutínio.
— Por que é que você sempre consegue o que quer? — falei.
Alma ostentou um sorriso ainda maior do que antes.— Não tem nada que você queira mais de mim do que conhecer algumas respostas? — propôs de forma irreverente e indecente.
Sempre astuta e engenhosa, aquela garota me manipulava com facilidade do jeito que queria. Sou sempre uma peça no seu jogo de xadrez. Se eu fosse esperto teria recusado uma dança de amor. Lembrar pode doer mais do que só imaginar.
Cheguei a uma conclusão ali, naquele momento: Além de desligar o cérebro em momentos cruciais, eu também gostava de sofrer. Aquela era uma proposta que eu não deveria aceitar.
Alma me encarava de volta. Na boca, um convite sensual irresistível. Não recusei.
— Não quero deixar assuntos pendentes, estranho lindo. — aquela boca se colou à minha, exigente. — E ontem paramos bem no meio de um.
Ela me deu tudo o que eu queria, tudo o que deixaria ainda mais difícil a sua partida. Ela me deu mais uma coisa da qual doeria viver sem. Ela se marcou no meu corpo como uma tatuagem. Um símbolo permanente grifado dentro do meu ser. Ela me ofereceu um pedaço da sua droga, um vício novo adquirido com prazer e gosto de saudade. Um amor completo, sem reservas, sem restrições. Sem pressa. Uma viagem feita para se apreciar cada canto e cada curva, cada parada antes da chegada ao destino.
Eu me perdi no sabor da sua silhueta. Um corpo inteiramente manuscrito na linguagem que só o amor sabe escrever e só os amantes sabem ler. Ela me quebrou no seu cheiro de sonho e eu me reconstruí no som da sua respiração. Absorvi o toque da sua pele, tentando fazer dela o pulsar do meu coração. Um amor de corpo e alma.
Agora mais do que nunca, ela se fez o meu céu e o meu inferno. A minha salvação e a minha perdição. Um presente e uma maldição.
Como posso viver se vou perdê-la e ela é a minha própria vida?
Prontinho. Deu por hoje. ;)
Semana que vem eu volto e explico o que aconteceu naquele árvore de visões.
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Tempo Quebrado | 2
RomanceA maçã tem o gosto do pecado... e a cor do sangue. Gael Ávila e Alma Ferraz conquistaram o direito à liberdade e ao amor que nasceu como um fruto proibido. Mas um romance assim, sempre cobra o seu preço! Uma decisão foi tomada, um sacrifício foi fei...