43 - Pigmeus - Parte I

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Não foi a pior noite da minha vida, mas também não foi das mais confortáveis que já desfrutei. Quando eu acordei, a vila ainda estava adormecida e silenciosa. O céu começava a assumir aquele tom rosado que anuncia a chegada do astro rei.

De onde eu estava não conseguia ver a bola de luz incandescente surgir como um bocejo por trás do horizonte, mas fechando os olhos, podia ver a imagem sob as pálpebras. Imagem que tinha se tornado parte da minha rotina. Eu podia ver os olhos dela sorrirem para mim, a voz suave sussurrar que tudo ficaria bem. A mesma promessa velada que toda manhã carrega consigo.

Eu sentia tanta falta dela. Queria tanto sentir os braços dela em volta do meu pescoço outra vez. Queria ouvir de novo aquela risada alta e estridente, ver aquelas bochechas coradas de tanto dançar, sentir a macia pele branca de veludo, o cheiro de flor, o gosto doce de felicidade. A dor da saudade espremeu o meu coração com agressividade. Tinha sido há uma vida atrás, a última vez que a tinha visto saudável. Alegre, livre e espontânea. Viva.

Eu sabia que quebraria a promessa que fizera a ela, embora tivesse jurado a mim mesmo que cumpriria todas as que lhe fizesse. Eu nunca mais seria feliz se Alma não estivesse comigo. Eu sabia que sequer me esforçaria para conseguir isso. Eu preciso dela, como asas precisam do céu, como a respiração precisa do ar, como os peixes precisam da água, a noite da escuridão, o arco-íris das cores, o céu das estrelas, o fogo do calor e o coração, de uma pulsação. Eu preciso dela, como a lucidez precisa da razão.

Depois que a aurora nasceu e o céu se tornou azul, as pessoas começaram a sair das cabanas e a fazer barulho lá em baixo. O dialeto usado por eles ainda era embolado e ininteligível, exatamente como no dia anterior, mas algumas outras coisas ficaram mais claras expostas à luz do dia. O corpo adormecido no saco ao lado do meu ressoava levemente.

— Ei, Ramon. — chamei baixo. Ele não acordou, nem sequer se mexeu.

Balancei o meu corpo para tomar algum impulso. A gaiola mole oscilou para frente e para trás. Quando cheguei perto o suficiente dei um chute no peso morto que roncava.

— Ai! — ele acordou reclamando.

— Fala baixo, seu idiota!

— Mas o que foi isso? — ele retrucou sussurrando. — Por que está me batendo?

— Porque você merece! Acha que já esqueci que é por sua causa que essa merda toda está acontecendo?!

— Mas eu só estava seguindo... — ele se interrompeu de repente, num instante, completamente alerta do sono.

— Seguindo o que? — alguma coisa não estava me cheirando bem.

— Nada!

Ele me olhou com aquela cara típica, meio assustada, de quem quase deixou escapar o que não devia. O que está escondendo de mim, filhote de raposa?

— Quer levar mais um? É melhor abrir logo essa boca! Dessa vez eu não vou...

— O meu instinto! O meu instinto. — o garoto girou o ombro em que eu tinha acertado. — Eu só estava seguindo o meu instinto. Foi errado eu sei, mas só estava fazendo o que eu achava ser o certo.

Isso me bateu em cheio. Foi como levar um soco bem dado bem no meio da cara. Como eu, depois de tudo o que já fiz de errado na vida, poderia reprimir a semelhança entre nós dois naquele momento? Eu já tinha feito coisas muito piores do que aquele moleque achando que estava fazendo o que era certo. Eu não tinha moral para recriminá-lo, porque na verdade... nós eramos iguais.

Eu observei aquela figura murcha dentro da rede, cabisbaixo e amuado. Alguma coisa não estava batendo bem nessa história. Aquele moleque não era do tipo astuto e traiçoeiro. Como tinha armado aquela arapuca para a Alma? Não parecia ser de um caráter vingativo ou agressivo, ele mal se defendia das ameaças que lhe eram feitas. O olhar dele nunca era sombrio ou gélido. Uma pessoa assim não planeja a morte de outra.

Tempo Quebrado | 2Onde histórias criam vida. Descubra agora