Ficamos pensando e analisando uns aos outros por alguns momentos. E agora? Seguimos em frente ou tentamos outra coisa?— Mas aqui nessa escritura fala de libertação. As águas trazem a libertação. Talvez isso seja um sinônimo de saída. — Ramon lembrou.
— É. Pode ser. — a filha da lua franziu as sobrancelhas ponderando. — Isso é verdade, mas é só um palpite. E eu realmente não tenho um bom pressentimento sobre essa situação.
— Pois é, mas pressentimento também é só um palpite. É melhor a gente arriscar. — Elisa empurrou o cristal para o seu lugar antes que alguém pudesse falar qualquer coisa e a pedra se encaixou com perfeição.
O chão se desfez sem aviso prévio como areia sob nossos pés e nós caímos uns três metros para dentro de um túnel escuro. Todos embolados e amontoados uns em cima dos outros, fomos parar dentro de um velho carrinho de madeira que com o impacto, se moveu alguns metros nos trilhos. O lugar era bem apertado, mal caberia uma pessoa de pé com os dois braços abertos. Nós estávamos na entrada de uma abertura como uma boca negra e escura que se estendia atrás de nós. À nossa frente, a luz entrava vinda do lugar de onde caíramos. Era tudo o que nos cercava. Não dava para ver nada dentro da escuridão.
Um vento rasante, vindo não sei de onde e com cheiro de marisco e maresia, mofo e podridão, soprou quente sobre nossos rostos adentrando o túnel com velocidade e ferocidade, acendendo as tochas periodicamente espaçadas e penduradas dos dois lados das paredes. Elas foram se acendendo sozinhas, uma depois da outra. Suas chamas ainda tremeluziam na direção do vento que passara.
— Quem foi que fez isso?! Foram os espíritos! — Ramon fez a pergunta e ele mesmo a respondeu, agarrando-se ao braço de Elisa com os olhos arregalados e tremendo. — Os espíritos estão aqui para nos aprisionar para sempre! Eles vieram cumprir o que prometeram!
— Não seja um bebê chorão! — Elisa o desgrudou de si com uma cara feia.
O longo corredor se estendia sem fim, todo iluminado. O tremor que se seguiu e o som de uma quantidade absurda de água se aproximando capturou a atenção de todo mundo. Voltamo-nos de costas para o corredor, de frente para a origem do som. O som rugia acima de nós, entrando pelo buraco de onde viéramos. As primeiras gotas já nos atingiam quando Ramon gritava em cima de mim.
— Vai, vai, vai, vai! — ele se inclinou sem se importar onde estava pisando e se lançou contra um bastão na frente do veículo.
Uma alavanca colocada em velocidade máxima. A máquina se lançou túnel adentro, seguindo sobre os trilhos de ferro e madeira. A velocidade era incrível para algo tão precário e rudimentar. As tochas se aproximavam e passavam rápido demais por nós, apenas borrões nas paredes.
— Precisamos ir tão rápido? — perguntei desconfortável. Atrás de mim, o barulho se tornou ensurdecedor e a água invadiu com furor o recinto apertado, avançando com insanidade em nosso encalço. Um predador caçando uma presa. — Mais rápido. Mais rápido! — berrei.
A alavanca não se movia mais para frente, já estávamos no limite da velocidade. A onda enfurecida nos perseguia bramando e espumando. O carrinho seguia sua linha algumas vezes quase saindo dos trilhos com a impetuosidade com que se inclinava para fazer uma curva. Atrás de nós a luz ia morrendo à medida que era tragada pela escuridão das águas. Num ápice o travejo se tornou descendente. Os gritos pioraram ao redor. Em uma inclinação quase vertical, eu me recordei da montanha-russa onde tinha andado com Alma o ano anterior. Aquilo lá tinha sido brincadeira de criança comparado com a situação atual.
Todo mundo gritava sem parar e não sabia se era pior olhar para a queda vertiginosa à frente ou para o monstro líquido atrás. A velocidade crescia ensandecida e louca com o embalo selvagem da gravidade. A curvatura começou a diminuir e eu senti o meu corpo sendo esmagado com força para trás. Nós não víamos o nosso destino em virtude das curvas fechadas. A água não perdia velocidade, pelo contrário, parecia cada vez mais perto. Avançava sobre nós com ameaças e rugidos que mais pareciam gargalhadas perturbadas de uma consciência doentia.
Depois de mais uma curva fechada à esquerda nós vimos em fim, a nossa grande saída: uma bela e dura parede esculpida em pedra maciça!
— Freia! Freia! Freia! Freia! Freia! — todo mundo gritava ao mesmo tempo e puxava a alavanca com tudo para trás.
O carrinho cambaleou desequilibrado. A água estava a poucos metros de nós. As rodas soltaram fagulhas do atrito frenético contra os trilhos. Metal contra metal. Decidi que a velocidade com que a parede se aproximava me assustava mais do que a água.
— Freia mais! — berrei por cima dos outros gritos.
O puxão que dei na alavanca a quebrou e arrancou do lugar. Ela ficou presa na minha mão e o ar se soltou dos meus pulmões. A onda nos atingiu com ímpeto. Revirando tudo e todo mundo em seu interior. O gelo da água e o desespero da situação eram tudo o que eu conseguia processar. Tentei abrir os olhos e me focar. Estava tudo escuro. O meu corpo se chocou contra alguma coisa e uma luz imensa me atingiu. O vento vertiginoso era ainda mais gelado que a água. As minhas asas se abriram num reflexo involuntário enquanto eu rodava desorientado rodopiando pelo ar.
— Estou voando! — gritei agarrando a sanidade pelos cabelos. — Uhuuu! Isso!
É! Agora sim! Esse é o meu ambiente! Estou no céu! Solto, livre, desobstruído e desimpedido! Estou fora da gaiola!
À minha esquerda vi Elisa batendo as asas sustentando Ramon por uma perna. Natan acabava de agarrar o braço de Selva, içando-a para cima. Isso! Estamos vivos! E fora daquele lugar miserável! A risada que me escapou foi eletrizante. A água tinha arrebentado a parede onde iríamos nos chocar e escorria da abertura na rocha como uma grande cachoeira. Era um penhasco imenso de pura rocha, para cima e para baixo. Lá no solo, o deserto tinha desaparecido. O revigorante e refrescante verde selvagem acenava para mim das copas frondosas das árvores da floresta.
— Odeio esse lugar! Odeio esse lugar! Odeio esse lugar! — Selva espumava de raiva pela boca.
Coitada. Não dava para culpá-la por isso.
— E agora? — Elisa perguntou.
— Pode não balançar tanto, senhorita. — Ramon falou pendurado de cabeça para baixo.
— Acho que não é muito esperto reclamar com o piloto da aeronave sobre o voo, Ramon. — ela respondeu com um riso travesso.
— Está me deixando enjoado! — ele resmungou.
— Ai! Vai par lá, vai pra lá! — Selva falava tentando conduzir Natan para outro espaço aéreo. — Não quero que ele vomite em cima de mim! Chega mais pra lá!
Natan se afastou como a ruiva queria. Ele também não tinha escolha, ela o teria asfixiado se ele não o tivesse feito! Estava agarrada ao pescoço dele com força total.
— Vamos descer e descansar um pouco. — sugeri. — Depois seguimos viagem.
Primeira etapa concluída. Conseguimos atravessar com sucesso o primeiro obstáculo do caminho. Deixamos para trás o templo da perdição sem sentir saudade nenhuma daquele lugar.
Por hoje é isso, amores. Bjos e até a próxima!
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Tempo Quebrado | 2
RomanceA maçã tem o gosto do pecado... e a cor do sangue. Gael Ávila e Alma Ferraz conquistaram o direito à liberdade e ao amor que nasceu como um fruto proibido. Mas um romance assim, sempre cobra o seu preço! Uma decisão foi tomada, um sacrifício foi fei...