O cajado da morte bateu forte no chão e um rasgo de facas afiadas feitas em gelo maciço cresceu para fora do solo seco, apontadas em nossa direção. O nosso grupo se dividiu em dois, separados pelo gelo cortante.As aves carniceiras desceram sobre nós aos bandos seguindo ordens silenciosas. Seus bicos e garras rasgavam a carne em que tocavam. O metal da minha espada cantava sobre a plumagem escura das criaturas que nos atacavam. Punhais de gelo voavam em nossa direção. Nós estávamos completamente expostos sob o céu estrelado. As aves pareciam se multiplicar sobre mim. Um número cada vez maior aparecia, mais rápido do que eu conseguia derrubar. Sangue e tecido rasgado. Talhos abertos queimando como fogo.
Ramon foi atingido no braço e se curvou de dor no chão. Uma grande lâmina gelada atravessava a carne de um lado ao outro. Selva foi aprisionada dentro de uma cúpula de aves negras. Decepei a assa da criatura que pretendia arrancar a cabeça do aprendiz jogado no chão. Natan conseguiu alcançar o grande abutre e eles lutavam com violência. Quebrei a gaiola viva que subia no céu e mantinha Selva presa e ela escapou. Um ardor faiscante na minha asa esquerda fez um líquido quente escorrer sobre ela.
— Ramon precisa de ajuda. — falei para Selva já me virando para alcançar Natan.
As duas criaturas bailavam com agressividade no céu. Duas aves completamente diferentes entre si. Um emaranhado de aves negras arrancavam nacos de penas e carne das costas e assas do caçador. O sangue pingava no chão. Uma ponta cortante e gelada lhe acertou a lateral do rosto ao mesmo tempo em que acertei nas costelas a criatura humanoide que o atacava. Ela não sangrou. Uma lufada de penas caiu do corte feito pela minha espada.
As aves me derrubaram no chão. O sangue me escorria pelo rosto e embaçava a minha visão. Lanças de gelo por pouco não incrustaram o meu tórax na terra árida. Tinha gelo escorregadio sobre o chão e neve branca caindo da noite escura. Rolei e me levantei ainda em desequilíbrio. Eu precisava chegar até à coisa. Não conseguiríamos lutar com todas aquelas aves.
O sangue dos animais espirrou misturando-se ao meu quando acertei mais alguns deles com o fio da espada. Eles protegiam o seu mestre. Natan estava deitado no chão. Uma asa passando por cima do corpo. Elisa tentava acordá-lo ao mesmo tempo em que defendia os dois.
Aquelas coisas estavam nos comendo ainda vivos. O meu corpo inteiro ardia. O abutre olhou para mim de frente. Um convite. Ele fez um sinal indicando para que eu avançasse. O metal da minha espada se chocou contra seu cajado de gelo. O bastão zuniu por cima da minha beça assumindo uma forma de foice. Segurei o material frio do cajado, tentando soltá-lo da mão do meu oponente. Seus dedos se alongaram em unhas afiadas, desviei o rosto e elas cortaram o meu peito em largos sulcos. A pele da minha palma que tocava o cajado queimou. Ele prendeu a minha mão ao objeto.
Elisa apareceu por trás, às suas costas. A arma dela quebrou as pontas da coroa de gelo da criatura, que voltaram a crescer maiores e mais afiadas. O gelo cresce na direção onde é cortado!
A coisa se ocupava com a espada de Elisa, me dando um segundo de liberdade. Num talho em diagonal, cortei a ponta do cajado oposta a mim. Os cristais começaram a se expandir em formas irregulares e pontiagudas. Soltei a espada e segurei o cajado com as duas mãos. Se não funcionasse eu estaria desarmado e com as duas mãos presas ao gelo.
Empurrei o objeto com toda a força que tive e o cabo cortante e perfurante atravessou a camada de penas para dentro da criatura. O desvario insano das aves ao meu redor se calou. A ponta afiada do cajado saiu por trás no meio das costas. Eu estava cara a cara com o abutre. A risada não saiu dos lábios rasgados em deboche dele, mas da própria noite ao meu redor. Uma explosão de penas negras encheu todo o espaço, rodando e rodopiando até pousar no chão. A gargalhada ecoava desaparecendo no vazio. Não tinha mais ave nenhuma. Tudo o que sobrou foi pena e gelo, preto e branco, espalhados pelo chão de terra seca.
Natan tinha conseguido se levantar e segurava o ventre com o braço direito, numa posição meio curvada. Selva estava sentada com a cabeça de Ramon apoiada no colo. O rapaz respirava de forma acelerada e com dificuldade, deitado de lado.
— Nós precisamos ajudá-lo, Gael. Ele foi atingido por trás. — Elisa falou se abaixando ao lado dele.
Nas costas do garoto um buraco imenso olhou pra mim. Tinha muito sangue. E faltava muita carne.
— Ele estava me protegendo. Eu estava desarmada e fiquei presa no chão. As asas encravadas pelo gelo. — Elisa não olhava para mim enquanto falava. — Fizeram isso com ele... enquanto tirava as facas de mim e me soltava. Por favor, nós precisamos ajudá-lo. — os olhos dela me suplicaram.
Uma caixinha de surpresas. Tão medroso em alguns momentos e tão corajoso em outros. Quem é você de verdade aprendiz?
Olhando sua ferida horrenda eu soube que teria uma dívida eterna com aquele moleque por ter salvado a vida da minha Elisa. Ramon não ia conseguir aguentar muito. Não tinha nada que nós pudéssemos fazer por ele. Se o povoado se recusasse a nos dar a medicação que havíamos vindo buscar...
— Temos que chegar depressa à aldeia. — falei passando um dos braços dele sobre meus ombros. Elisa imitou o meu movimento. O garoto gemeu de forma inumana. — Consegue sustentá-lo no ar?
— Consigo. — afirmou.
— Natan. — chamei. — Consegue voar?
— Acho que sim. — falou um pouco bambo.
O ferimento que ele segurava já tinha coberto seus dedos de sangue. Selva se enrolou numa bola branca e subiu no pescoço dele mancando. O pelo branco estava salpicado de vermelho também. Nós ganhamos o céu. Ramon desmaiou. O sol nasceu.
Eu olhei o astro me sorrindo ao romper o horizonte. Os raios de luz aqueceram a minha pele fria, a voz da Alma aqueceu o meu coração.
Não importa o quão longa tenha sido a noite, o sol sempre repõe o dia.
Olá amados!
Prevejo alguns suspiros vs olhos revirados para Ramon. Fofoquem comigo.
Estamos na reta final! Então se gostou deixa uma estrelinha. Bjos!
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Tempo Quebrado | 2
RomanceA maçã tem o gosto do pecado... e a cor do sangue. Gael Ávila e Alma Ferraz conquistaram o direito à liberdade e ao amor que nasceu como um fruto proibido. Mas um romance assim, sempre cobra o seu preço! Uma decisão foi tomada, um sacrifício foi fei...